Formação de condutores: Argentina só vai habilitar quem fizer curso sobre igualdade de gênero. E no Brasil, daria certo?
Na Argentina, os futuros condutores deverão estudar assuntos como machismo estrutural, misoginia e a presença da mulher no trânsito. E você, acha que essa medida daria certo no Brasil?
O governo argentino determinou que a partir deste mês de março, aqueles que forem tirar a Carteira de Habilitação, além de preencher todos as exigências voltadas para as leis de trânsito, terão que participar de um curso sobre igualdade de gênero. Além disso, deverão estudar outros assuntos importantes e que impactam diretamente no dia a dia no trânsito. Tais como: desigualdade entre homens e mulheres, machismo estrutural, misoginia, feminicídio e a presença da mulher no setor de transportes.
Mas, e no Brasil, será que essa medida daria certo?
Na opinião da professora Adriane Picchetto Machado, especialista em Psicologia do Trânsito, Psicologia Social e Avaliação Psicológica, tal iniciativa é fundamental. Haja vista que se trata de uma medida educativa e preventiva em relação às violências sofridas pelas mulheres em todos os ambientes sociais, inclusive no trânsito.
De acordo com a especialista, igualdade e respeito devem estar presentes em todos os espaços e relações, sendo que o trânsito é, também, uma manifestação cultural de um país.
“A presença da violência, da discriminação em relação às mulheres é verificada de diferentes formas, inclusive com o mito de que as mulheres teriam menor capacidade para dirigir ou atuar como motoristas profissionais”, ressalta.
Violência contra a mulher x violência no trânsito sofrida pelas mulheres
A violência no trânsito é apenas mais um aspecto da discriminação sofrida pelas mulheres em diferentes âmbitos da vida, considera Picchetto. “Pesquisas mostram que a ascendência profissional, a liberdade sexual, a modificação de papéis estereotipados a respeito da condição feminina, sempre foram desestimuladas e até mesmo reprimidas com violência pelo patriarcado, que ainda é a base da nossa sociedade. O patriarcado prevê um papel desigual, menor, passivo e menos destacado no âmbito da produção e das relações sociais para as mulheres. Basta lembrar que somente há poucos anos a mulher conquistou o direito ao voto no Brasil”, justifica.
A instrutora de trânsito e graduanda em Recursos Humanos com foco em treinamento e desenvolvimento pessoal, Gisele Pereira de Andrade, ilustra a questão, destacando o termo “mansplaining” que ficou conhecido junto às experiências vividas descritas pela historiadora Rebecca Solnit. Em tradução, ela diz que os homens tendem a explicar coisas para as mulheres de forma condescendente. Independente de entendermos sobre o assunto ou não. Ou seja, ele já pressupõe que a mulher não sabe, principalmente quando se trata de um assunto de uma área de atuação predominantemente masculina.
É evidente que neste setor trabalham muito mais homens do que mulheres, há mais homens motoristas do que mulheres motoristas, e isso, talvez, dê a impressão equivocada, de que os homens são mais bem preparados para o trânsito do que as mulheres, quando na verdade as mulheres tendem a ser muito mais prudentes no trânsito, garante.
“Para termos um trânsito mais inteligente, é preciso prudência, cautela, empatia. Pensando desta forma – que a mulher não sabe- vem um pensamento secundário: Ela não deveria estar ali, já que não sabe. E, assim, frases machistas vão sendo propagadas contra a mulher no trânsito. Com isso, muitas mulheres sentem-se intimidadas e por vezes desistem de dirigir, até mesmo por acreditar no que é dito pelos homens, e muitas vezes por outras mulheres também, mantendo-se, desta forma, dependente para ir e vir”, lamenta a instrutora.
Andrade enfatiza ainda a presença de um sentimento de superioridade do homem. “Quanto mais superior este homem se sente, mais poder ele acha que detém, e maior é a possibilidade dele reagir de forma violenta contra a mulher no trânsito, porque ele acredita ser melhor, e que o lugar da mulher não é ali, e se está ali, não sabe o que faz, e se faz, não faz direito”, exemplifica.
Comportamento feminino x masculino
Apesar de desconhecer pesquisas ou estudos que possam apontar os comportamentos ditos masculinos ou femininos no trânsito, aos homens, o campo do trânsito sempre foi uma “terra de homens”, no sentido de sua brutalidade e complexidade. Às mulheres, sempre coube o cuidado do lar, dos filhos, do bem estar da família, sendo segregada dos espaços públicos, observa a professora Adriane Machado.
“Podemos lembrar a frase que estampa claramente essa diferenciação, ‘mulher no volante, perigo constante’, e o termo ‘mulher da rua’ carrega, em seu bojo, a clareza do conceito de que lugar de mulher é em casa, passiva e obediente às demandas masculinas. Porém, deixemos claro que lugar de mulher é onde ela quiser, onde ela desejar”, evidencia.
Neste aspecto, a educação tem papel fundamental, já que, ainda hoje, homens e mulheres veem o trânsito de formas diferentes, devido ao modo como são educados desde a infância, considera a instrutora de trânsito, Gisele de Andrade.
“O veículo é como se fosse a extensão da personalidade das pessoas, elas vão dirigir como vivem, e vão viver como foram educadas para viver. Nos homens é perceptível a vontade de dominar as técnicas de direção e pilotagem, o funcionamento do veículo, e também a demonstração deste conhecimento, desta perícia para as pessoas, muitas vezes se colocando em situações de risco. Eles tendem a refletir muito menos sobre consequências dos seus atos, pois, possuem uma autoconfiança muito maior nessa área do que as mulheres”, ilustra.
Enquanto as condutoras do sexo feminino percebem o trânsito com um olhar mais cuidadoso, observa. “As mulheres são mais zelosas, temem acidentes, situações de risco, ferir alguém ou se ferir. Portanto, são muito mais prudentes que os homens no trânsito e é, justamente por isso, que elas desenvolvem mais medo de dirigir – porque têm medo do acidente”, afirma a instrutora.
No Brasil, essa medida daria certo?
É possível que sim, assegura a especialista em Psicologia do Trânsito, Adriane Picchetto Machado. “Se tivéssemos políticas públicas que promovessem com maior força a igualdade dos gêneros”, esclarece.
Para Gisele, a instrução como estratégia a fim de diminuir a discriminação contra as mulheres pode funcionar em nosso país, desde que a população se sensibilize, conecte-se, e a parte repressora atue firmemente sempre que houver contrariedade.
“Seria interessante o Brasil também ter um projeto semelhante, um curso à parte para os futuros condutores e pilotos, ou uma exigência dentro do curso teórico de trânsito para candidatos a habilitação, de falar sobre igualdade de gênero e o quanto isso pode repercutir no trânsito através de nossas ações com base em nossos pensamentos. Quando um condutor comete uma infração de trânsito, muito rapidamente ele se indigna, e procura pelos seus direitos para anular uma penalidade. No entanto, são poucos os que valorizam o trânsito, o deslocamento. Poucos se informam de como utilizar o trânsito de forma mais humana e segura. As pessoas precisam valorizar mais o trânsito, o deslocamento, se interessar mais por fazer o que é certo e prudente. Se nós não nos importarmos com trânsito, podemos nem chegar ao destino”, evidencia e finaliza a instrutora.
E você, acha que essa medida daria certo aqui no Brasil?
Leia também:
Respeito no trânsito: curso de formação de condutores é oportunidade de reforçar valores
Lei 14.071: o que realmente muda para a Primeira Habilitação?