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Pedestre, o trava-línguas


Por Celso Mariano Publicado 23/05/2016 às 03h00 Atualizado 02/11/2022 às 20h27
 Tempo de leitura estimado: 00:00
Tratar bem o cidadão que está no papel de pedestre é um desafio no mundo todo.O próprio pedestre tem contribuído para a acidentalidade que o atinge no trânsito.

Pedestre: aquele que anda ou está a pé. Palavrinha difícil de pronunciar. Volta e meia se ouve um “predeste” por aí. É praticamente um trava-línguas. Já ouvi da boca de autoridades e de jornalistas. Ai! Dói no ouvido. Compreensível: é uma palavra de sonoridade complicada para quem tem uma preguiça nata para a erudição. Acho que é o caso de boa parte de nós, brasileiros. Deveríamos ter escolhido outro nome, um que fosse mais fácil de pronunciar, tipo andante, caminhante ou…yaya. É: yaya. Não é simpático? É assim que se diz pedestre em turco. Andei brincando com essa ideia de achar uma palavra mais, digamos, amigável, no Google. Pedestre vem do latim e significa  ‘o que vai a pé, que está a pé, ou em pé’. É adjetivo e substantivo de dois gêneros. Menos mal, já pensou tratarmos meninas, moças e senhoras por “pedestras”? Não, já tá complicado que chegue. Em sentido figurado pode significar ‘sem brilho, rústico, modesto, humilde, simples’. Também define o ‘soldado de polícia do Rio antigo’. Curioso isso.

Até mesmo para pronunciar e escrever esta palavra que define o mais nobre dos papéis que exercemos na mobilidade, temos tido dificuldade. Quem sabe com uma palavra menos complicada, também ficasse mais fácil de respeitar? Às vezes desconfio que o nome atrapalha. Em espanhol, pedestre épeaton. No português de Portugal, é peão. Bem mais simples, né? Em francês, piéton, bem mais chique. Achei uma referência em guarani: ohasáva. Hum, melhor não. Também procurei uma palavra equivalente em tupi, uma de nossas “línguas originais” (me perdoem os que consideram apenas nossas raízes européias), mas não encontrei. O quê? Você não sabia que o tupi já foi a língua mais falada aqui na terra brasilis? Para firmar o português como língua oficial o Marques de Pombal, em 1758, teve que proibir a língua tupi. As línguas por aqui faladas antes da chegada dos europeus nos legaram inúmeras palavras, como jururu, abacaxi, pipoca e ipanema. Mas nada muito específico para o que definimos como pedestre. Provavelmente porque nossos silvícolas não precisavam de um termo exclusivo para quem anda a pé, pois isso não tinha utilidade nenhuma, já que era como todos se locomoviam. Bem que podiam ter contribuído com algum termo simples, de fácil pronúncia e alto carisma, como é o caso de piá, que significa menino, até hoje, para os sulistas em geral.

Desculpem meu diletantismo pela etimologia. Mas achei importante apontar alguns holofotes para aspectos pouco, ou quase nunca, considerados. Se quisermos resolver nosso trânsito precisamos compreendê-lo e, para isso, é preciso uma abordagem holística e sem preconceitos. Claro que mudar uma palavra não vai nos livrar do fogo do inferno, mas esse exercício pode nos ajudar a entender nossa cultura, nossos comportamentos, nossos valores, nosso padrão ético. Viram (professores e educadores em geral) como trânsito é um excelente tema transversal? Penso que se o nome de alguma coisa é difícil de pronunciar, essa coisa tende a ficar marginalizada, fora de nossos pensamentos, consideração e respeito. Pedestre, por sua sonoridade (e praxis, em nossa mobilidade diária) parece mais um xingamento, uma pecha, um apelido maldoso de um bullying inconsciente que vamos perpetrando ad eternum, coletivamente, piorando a relação com este usuário super-frágil do trânsito que, pasmem, somos nós mesmos (!) no momento que desembarcamos deste batiscafo que é o carro.

A humanidade deslocou-se à pé por milhares de anos. Mas desde que domamos cavalos para montaria e ganhamos o poder de quatro patas, meio que perdemos o interesse pelas nossas duas perninhas. Mais tarde, ao nos turbinarmos como seres semoventes com a força de dezenas de cavalos em nossas motos e carros, chegamos, desgraçadamente, ao nível do desprezo por quem anda à pé. Pernas são equipamentos básicos, originais de fábrica, que nos servem desde sempre. Muitos humanos motorizados não sabem, mas continuam sendo yayas. Ops, pedestres. Você não consegue circular pelos corredores do supermercado, ou do shopping, ou jantar no restaurante sem antes desembarcar do seu carrão. Embora não seja uma má ideia, hein? Muitos adorariam fazer isso. Pior: muitos parecem acreditar que podem, que têm direito a isso e extrapolam os limites da física e do bom senso. Nossa simbiose com a máquina elevou o centauro de outrora a um nível inimaginável até mesmo para a mais alucinante mitologia.

Tratar bem o cidadão que está no papel de pedestre é um desafio no mundo todo. Na terra de Pindorama, nos dias de hoje, podemos encontrar 71 referências ao termo pedestre na nossa lei maior da mobilidade, o CTB – Código de Trânsito Brasileiro. No Art 29, XII, parágrafo 2o do CTB, pode-se ler “…os veículos de maior porte serão sempre responsáveis pela segurança dos menores, os motorizados pelos não motorizados e, juntos, pela incolumidade dos pedestres.” Forte isso, não é? Mas não tem sido suficiente. Continuamos massacrando a nós mesmos quando vamos para o trânsito conduzindo – e sendo conduzidos – apenas pelas próprias pernas. Ah, quem dera, se apenas mudar o nome de pedestre para yaya, peão ou algum outro, pudesse contribuir para diminuirmos a carnificina diária do nosso trânsito.

Mas o que mais tem assustado pesquisadores e especialistas no mundo todo é que o próprio pedestre tem contribuído para a acidentalidade que o atinge no trânsito. Comportamento inseguro, do tipo suicida-não-intencional, penso eu. Segundo dados do Programa Vida  no Trânsito, o fator distração está em plena em ascensão. O uso de celulares, players de música e smartphones têm muito a ver com isso. Cada vez mais os pedestres “contribuem para os próprios atropelamentos” por conta de uma mistura de desrespeito às regras e distrações. O trânsito já é, potencialmente, perigoso para todos, especialmente para seu usuário mais frágil. A responsabilidade da segurança não é só dos condutores. E nós todos, enquanto pedestres, precisamos assumir a parte que nos cabe.

Enquanto isso, continuamos a atropelar o pedestre na fala, na escrita e nas ruas.

Falei sobre isso, no último dia 12/05/16, no rádio e na TV: na Rádio 98 FM, do Grupo GRPCOM:

e no Paraná TV 1a Edição (RPCTV/Globo):

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