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Onde a “indústria da multa” mostra sua face


Por Eduardo Cadore Publicado 17/06/2018 às 03h00 Atualizado 02/11/2022 às 20h15
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Indústria da multaFoto: Arquivo Tecnodata.

Sabe-se que toda sociedade necessita, historicamente, de um Estado que possa intervir em prol do interesse coletivo desta. O Estado somos nós, qualquer filósofo do Direito e Sociólogo moderno há de concordar. Entretanto, há um suposto distanciamento entre os operadores do Estado, leia-se órgãos da Administração Pública, no que tange a atuação conjunta com o civil que desconhece as atividades desempenhadas e o real objetivo de se garantir segurança.

Meu interesse neste rápido artigo é justamente levantar um questionamento em resposta a quem afirma que o discurso social, muito popular entre os motoristas infratores, da “indústria da multa”, é uma desculpa para cometer infrações. O tema, que mereceria uma dissertação, causa-me certo desconforto mesclado com interesse, na medida em que os “ataques” de quem defende a existência de uma indústria da multa e de quem defende a existência, ao contrário, de uma indústria de infratores, me parecem, de ambos os lados, ficarem em um lugar comum e promovem não o conhecimento e a reflexão, mas um cabo-de-guerra entre fiscalizadores e condutores autuados.

Que existe uma cultura transgressora no trânsito em nosso país não há nenhuma dúvida. Uma simples observação das condutas no trânsito, de praticamente todos os usuários, veremos que a infração de trânsito é tão comum e cotidiana, que inclusive nós mesmos, se auto-avaliarmos nossos comportamentos, encontraremos, em alguma medida (uns mais, outros menos), o cometimento de infrações de trânsito (há que não se confundir infração com multa, pois muitos condutores até então nunca foram multados, mas cometem infrações todos os dias). Às vezes é difícil admitir, mas o Código de Trânsito Brasileiro prevê condutas como infrações que, sem medo de soar radical, são cometidas por quase todos os condutores, em algum momento da sua trajetória como motorista (ou é incomum esquecer-se de portar um documento, ou fazer uma mudança de direção sem usar a seta indicadora, ou ainda dirigir sem estar física ou mentalmente adequado, etc.?).

Em contrapartida, ouve-se muito falar em “indústria da multa”. O que seria isso? Para o discurso social presente no imaginário dos condutores que crêem nisso, há, nos parece, na maioria das vezes, uma crítica ao sem número de autuações realizadas pelos órgãos de trânsito. Tomemos meramente a título de exemplo, o número de 1.550.764 autuações por excesso de velocidade (art.218, CTB) em 2017 apenas nas vias do Rio Grande do Sul, segundo dados do DETRAN/RS disponíveis em seu site.

Também se defende um interesse “arrecadatório” do Estado por trás das autuações, no sentido de que não haveria tanta preocupação com a segurança quanto há com a aplicação e arrecadação de multas (o que ganhou força com a regulamentação do CONTRAN, no momento já suspensa, de se parcelar multas no cartão de crédito).

Entendo, e eis o cerne da questão, que a faceta complexa, perigosa e, ouso dizer, perversa do Estado, no que tange às infrações de trânsito, está não no ato de fiscalização (que apresenta falhas, muitas vezes, que ensejam inclusive em multas aplicadas injustamente, mas que ainda é minoria comparada com as autuações legais e ao correto desempenho dos agentes de trânsito), mas na ausência de ações efetivas educativas, conforme prevê o CTB há mais de 20 anos no seu capítulo VI, bem como e, no meu pensamento, principalmente, nos julgamentos das defesas e recursos contra autuações e multas ou demais penalidades impostas equivocadamente pela Administração Pública.

Mais comum do que se gostaria de imaginar, vê-se que muitas comissões julgadoras, suas respectivas autoridades e Juntas de Recursos (JARI), apresentam enorme dificuldade de reconhecer e deferir pedidos de arquivamento das penalidades quando há irregularidades ou inconsistências na autuação. Ouvi pessoalmente de uma Autoridade a infeliz frase de que “condutor infrator aqui comigo não tem vez”, isso dito diante de uma evidente falha na sinalização que invalidava a autuação do recorrente. Mesmo diante da omissão da própria Administração Pública em sinalizar corretamente as vias, ainda manteve-se a penalidade injusta, ilegal e, afirmo, imoral. E esse é apenas um exemplo de centenas de outros que se poderia elencar aqui (quem atua na área do Direito de Trânsito, tanto na esfera administrativa quanto na judicial, se depara com coisas assim todos os dias, infelizmente).

Para mim que atuo tanto como educador quanto Psicólogo e interessado no comportamento humano e também no Direito, o Estado brasileiro mostra a face perversa de uma suposta “indústria da multa” quando não forma cidadãos para o trânsito seguro, não exige qualificação maior para os profissionais envolvidos, não fiscaliza a atuação de seus agentes, e, especialmente, quando os servidores públicos que tem o dever se seguir o Princípio da Legalidade, basilar para se evitar um Estado imperial/totalitário, não acolhem defesas/recursos que, comprovadamente apontam para irregularidades no processo, desde a falha na autuação quanto aos erros nos julgamentos.

Portanto, concordo com o fato de que nós, condutores brasileiros, somos propensos à transgressão (a Fundação Getúlio Vargas divulgou em 2013 pesquisa que apontava que 82% dos entrevistados dizem ser fácil descumprir as leis no país, fonte (http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/radio/materias/ULTIMAS-NOTICIAS/441257-PESQUISA-DA-FGV-REVELA-QUE-82-DOS-BRASILEIROS-CONSIDERAM-FACIL-DESCUMPRIR-LEIS.html), e que o condutor seja considerado infrator após o devido processo legal. Entretanto, faço coro a quem aponta que a administração Pública, com suas exceções, claro, ainda age de forma totalitária e à margem da Lei, indeferindo defesas e recursos que são cabalmente irregulares, onerando injustamente o cidadão e o próprio Estado, pois há cada vez mais recursos e o próprio Judiciário recebe infinidade de ações que poderiam ter sido resolvidas com base nos princípios do artigo 37 da Constituição e da rica legislação administrativa que coloca os órgãos de trânsito no dever de também cumprirem as leis.

Como menciona com grande felicidade o Mestre Julyver Modesto de Araújo, todo cidadão tem direito a ser multado corretamente. No momento que os julgadores fecham os olhos para as irregularidades apontadas e comprovadas, eis aí a face temerosa de um interesse outro que não a justa penalização para a segurança no trânsito. Eis, portanto, a “indústria da multa”, que não irá acabar meramente não se cometendo infração, apenas, mas também se fazendo justiça e se qualificando tanto condutor quanto agentes da Administração Pública.

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