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Da necessidade de fiscalização


Por Eduardo Cadore Publicado 24/01/2020 às 03h00 Atualizado 02/11/2022 às 20h06
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Fiscalização de trânsitoFoto: Arquivo Tecnodata.

Muito se tem falado na imprensa nos últimos meses, talvez como nunca antes, acerca de novos modelos de gerenciamento da questão do trânsito no Brasil, especialmente no que se dispõe sobre a legislação de trânsito. Épocas de questionamentos que, em última análise, poderiam servir para uma revisão técnica e voltada ao interesse público, mas que, de alguma forma, perdeu-se em discursos populistas, anticientíficos e pouco técnicos partindo do chefe do Poder Executivo e seu time, sobretudo no Ministério da Infraestrutura.

Uma parte significativa dos condutores brasileiros já fazia uma análise reducionista da questão do trânsito, avaliando a fiscalização executada pelos órgãos do Sistema Nacional de Trânsito como mais uma “pedra no calçado” do cidadão que, cansado de pagamento de impostos, ainda tem que se virar para pagar multas de trânsito, cursos de reciclagem, dentre outras exigências legais decorrentes do descumprimento das normas básicas de circulação e condutas no trânsito e que não foram inventadas neste ou naquele governo, mas reflexo da própria evolução legislativa e tecnológica pelo qual passou o país desde a Constituição Federal de 1988 (lembrando que o atual Código de Trânsito foi discutido, promovido e sancionado na década de 1990).

O tema saiu do âmbito dos especialistas dos órgãos públicos e ganhou notoriedade entre qualquer condutor de veículo, independente da sua formação técnica. Análises sem critérios, afogadas em representações sociais negativas do papel do Esforço Legal no controle do comportamento e promoção da segurança, inundam as redes sociais e dão o mote para manifestações do Estado Brasileiro, hoje representados pelas já supramencionadas figuras políticas.

Como já mencionei em outras oportunidades, revisar as normativas, ouvir a população nas suas angústias, não precisa ser necessariamente uma busca desenfreada por responsáveis ou culpados. Fala-se muito em combater ideologias, porém é justamente o oposto que tem sido feito: utiliza-se de irregularidades pontuais (radares sem estudo técnico podem existir sim e o próprio Conselho Nacional de Trânsito veda o uso desses equipamentos) como forma de destituir a fiscalização do seu lugar de garantidora e mantenedora do comportamento seguro no trânsito.

O fator humano é mundialmente reconhecido (e tal constatação perde relevância entre os apoiadores de medidas anti-fiscalização) como o principal motivador dos acidentes e no âmago das pessoas está a ausência da representação da sua mortalidade (Freud já nos ensinou que o nosso Inconsciente desconhece a morte e, portanto, se vê imortal), o que reflete na percepção de risco mais próxima da realidade e outras nem tanto. Em contrapartida a isso, ganhou força um discurso social de que as pessoas não precisam de fiscalização (e de forma análoga, não precisam de CFC para aprender a dirigir, conforme PL em pauta no Congresso Nacional) para transitar com segurança, invariavelmente sendo o argumento baseado na suposta qualidade de bons a excelentes motoristas como nos avaliamos (você já encontrou um condutor que se considere um motorista ruim ou mediano?). Ora, tal ideia não se sustenta, basta observarmos as estatísticas que apontam a piora no índice dos acidentes nestes últimos meses (entre agosto e outubro de 2019 o aumento foi de 7,2% em relação ao mesmo período de 2018, segundo dados da PRF), notoriamente a partir da supressão da fiscalização de velocidade nas rodovias federais, determinadas pela Presidência da República e acatada pela Polícia Rodoviária Federal e Departamento Nacional de Infraestrutura de Transporte, já retomada desde os últimos dias do ano de 2019.

Acidente de trânsito não é mero acaso, como a etimologia dá a entender, mas um fenômeno psicobiossocial explicável, compreensível e, o mais importante, evitável, desde que se adotem medidas nas diversas esferas do comportamento humano, na engenharia e tecnologia viária e veicular e, claro, no constante aperfeiçoamento da legislação. Caminhar no sentido de tirar a legitimidade da fiscalização e da função social da legislação de trânsito não resolverá a questão de mais de 30 mil mortes anuais no país decorrentes do trânsito e centenas de milhares de feridos, pelo contrário, estaremos rumo a um abismo de difícil transpasse, pois com discursos de figuras políticas e de poder já mencionados, ignorando os especialistas e estudiosos do tema, inflama-se a parte da população acostumada a cometer infrações e que, obviamente, não desejam ser penalizadas com multas, suspensão ou cassação de sua habilitação. Infelizmente, entramos num terreno minado, em que o Governo Federal (e alguns Estaduais) não percebe ou fazem questão de não o fazê-lo, que estão na iminência de uma explosão de mortes maior ainda do que, infelizmente, tem sido nosso histórico.

É possível, portanto, a revisão da legislação, mas esta deve ser feita com responsabilidade e cercada de quem possui a adequada formação, prevalecendo a técnica sobre a politicagem, afinal de contas, segundo dados da própria PRF, no período em que os radares ficaram proibidos de serem utilizados pela fiscalização, 288 pessoas morreram a mais, considerando o mesmo período de 2018. Tais mortes podem, em certa medida, estarem relacionadas à omissão do Estado brasileiro de não concluir com urgência o novo estudo sobre a fiscalização e a reimplementação de radares fixos nas rodovias federais.

Ademais, foram divulgadas que 6 capitais, incluindo Porto Alegre, alcançaram a meta de redução de pelo menos 50% do índice de vitimas fatais, promulgada pela ONU através da Década de Ação pela Segurança no Trânsito e nenhuma dessas cidades abriu mão da fiscalização, pelo contrário, são cidades que apostaram em políticas públicas e de segurança viária com maior organização e intensidade nesta década. Assim, ao lado da engenharia viária e educação, a fiscalização é o meio de frear o desejo humano da transgressão e, consequentemente, devolver as pessoas vivas e sadias para suas famílias. Não deixemos que o interesse individual de descumprir a norma sem ser penalizado subjugue a segurança viária e a vida de todos.

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