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Acabar com as Autoescolas é, afinal, um progresso ou um retrocesso?


Por Julyver Modesto de Araujo Publicado 25/10/2019 às 03h00 Atualizado 02/11/2022 às 20h08
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Fim das autoescolasFoto: Assessoria de Comunicação Detran/ES.

Qual seu primeiro pensamento ao ler o título deste texto? Com certeza, a depender do grau de envolvimento do leitor com a formação de condutores, o alcance desta curta frase será diferente. Para os donos de Autoescolas, a perspectiva inicial é, no mais das vezes, de preocupação com o seu futuro comercial; para os instrutores de trânsito, como tenho visto nas redes sociais, há uma ambiguidade de sentimentos: ou de incerteza quanto à sua atividade profissional ou de projeção de uma atuação autônoma; para os candidatos à habilitação (e até para alguns motoristas que já passaram pelo processo), percebe-se certa euforia, pela potencial diminuição de custos para obtenção da CNH, aliada a um sentimento de menosprezo ao importante papel desempenhado (ou que deveria ser) pelos Centros de Formação de Condutores.

Acabar com as Autoescolas é, afinal, um progresso ou um retrocesso?

Se avaliarmos a legislação de trânsito brasileira, veremos que, na vigência dos 2 primeiros Códigos Nacionais de Trânsito no Brasil (Decreto-lei n. 2.994/41 e n. 3.651/41), não se fazia menção à necessidade de aprendizagem por meio de instituições especificamente criadas para tal, bastando que o interessado realizasse o “exame médico” (no 1º CNT, chamado de “exame psico-fisiológico”), para obter a sua “licença para aprendizagem” (no 1º CNT, chamada de “licença para praticagem”), a partir do que poderia realizar a aprendizagem (ou praticagem) com qualquer motorista (havia, inclusive, infração de trânsito atribuída ao condutor que ministrasse aulas a indivíduos que não possuíssem citada licença).

Foi somente com o 3º CNT (Lei n. 5.108/66), que a lei passou a prever as “escolas de aprendizagem”, cujas normas e exigências para instalação e funcionamento deveriam ser editadas pelo Conselho Nacional de Trânsito (artigo 5º, inciso XIV).

Embora chamadas legalmente de escolas de aprendizagem, popularizou-se o termo Autoescola, ainda que não fosse utilizado na Lei. Com o 4º (e atual) Código de Trânsito, instituído pela Lei n. 9.503/97 (cuja denominação também mudou, de CNT – Código Nacional de Trânsito para CTB – Código de Trânsito Brasileiro), o termo AUTO-ESCOLA (assim mesmo, com hífen, ainda antes do ‘acordo ortográfico’, que, agora, recomenda a palavra única: AUTOESCOLA) foi taxativamente utilizado nos artigos 154 e 156, para designar, respectivamente, tanto a inscrição a ser aposta no veículo de aprendizagem, quanto a instituição responsável pela formação de condutores (o artigo 156, inclusive, deixa a entender a possibilidade de coexistência de outras denominações, ao mencionar que o Contran deveria regulamentar o credenciamento para prestação de serviços pelas ‘auto-escolas’ e outras entidades destinadas à formação de condutores).

Há que se apontar, ademais, que o CTB deixa subentendido que há perfeita possibilidade de formação de condutores SEM Autoescola, ao prescrever, no artigo 155, que “A formação de condutor de veículo automotor e elétrico será realizada por instrutor autorizado pelo órgão executivo de trânsito dos Estados ou do Distrito Federal, pertencente ou não à entidade credenciada”, o que significa que o indispensável é o INSTRUTOR e não a ENTIDADE de formação, o que foi, entretanto, limitado pelo Contran, ao regulamentar o tema por Resolução (hoje, o instrutor “não vinculado” somente pode atuar mediante prévia autorização do Detran, nas localidades que não contarem com um CFC, e limitado a um candidato a cada período de 6 meses, conforme artigo 21 da Resolução do Contran n. 358/10).

Até mesmo a substituição da nomenclatura “Autoescola” por “Centro de Formação de Condutores” surgiu por meio da regulamentação criada pelo Contran, que criou e classificou os CFCs em 3 categorias, conforme a sua destinação: “A” (ensino teórico), “B” (ensino prático) e “AB” (para ambos), com exigências específicas para cada um deles. Assim, apesar de não ser expressamente mencionada esta “transição”, reservou-se a classificação de CFC B às antigas Autoescolas (na norma hoje em vigor, o artigo 7º da Resolução n. 358/10 prevê que “As auto-escolas a que se refere o art. 156 do CTB, denominadas Centros de Formação de Condutores – CFC são empresas particulares ou sociedades civis, constituídas sob qualquer das formas previstas na legislação vigente”).

A 1ª Resolução pós-CTB, de n. 33/98, chegou a criar outra categoria de entidade relacionada à formação de condutores, que estaria em uma posição acima do CFC e que serviria para certificar os CFCs e realizar os exames teóricos, denominada de Organismo de Qualificação de Trânsito – OQT, o que não saiu do papel e foi logo substituído, por meio da (já revogada) Resolução n. 74/98, por outra estrutura denominada Controladoria Regional de Trânsito – CRT, que, além de certificar e auditar os CFCs, seria responsável pela formação de sua “mão de obra” (Instrutores, Diretores gerais e de Ensino), além dos examinadores.

Esta atuação na área de certificação e auditoria, igualmente, não funcionou como se pretendia, limitando-se as antigas CRTs à formação dos profissionais acima mencionados, sendo que, atualmente, o termo CRT foi abandonado (assim como as atribuições de certificação e auditoria), passando-se a utilizar, genericamente, a expressão ENTIDADES CREDENCIADAS, conforme Resolução n. 358/10.

Além das regras de funcionamento destas instituições de ensino, o processo de formação de condutores também está em constante modificação: exigência de aulas noturnas; carga horária mínima de aulas; obrigatoriedade (ou não) de simulador de direção veicular são alguns dos temas que têm se alterado na regulamentação do setor: aliás, dentre as 780 atuais Resoluções do Contran, a que mais sofreu mudanças foi, sem dúvida, a de n. 168/04, que trata justamente do tema – sem contar a mal sucedida reformulação completa, no ano passado (Resolução n. 726/18, revogada pela Deliberação n. 168/18), foi recentemente modificada pela Resolução n. 778/19 e está passando por uma reavaliação por parte do Denatran, para ser consolidada, em Resolução única, contemplando as regras de credenciamento e funcionamento das instituições de ensino previstas na 358/10.

Como se vê, ao longo destes 21 anos de vigência do atual Código de Trânsito, muita coisa já tem mudado para quem atua no segmento. Voltando à pergunta introdutória: no cenário atual, qual a perspectiva de que as Autoescolas não existam mais, como porta de entrada obrigatória àquele que deseja receber do Estado a licença para dirigir veículos automotores?

Provavelmente, para quem é profissional da área e acompanha as alterações da legislação de trânsito, não é novidade que, recentemente, foi apresentado Projeto de Lei neste sentido, que, se aprovado, permitirá que o interessado em se habilitar escolha se quer passar por aulas (teóricas e práticas) em um Centro de Formação de Condutores ou se prefere se preparar de forma autônoma, submetendo-se apenas às avaliações pelo órgão executivo estadual de trânsito (Detran), situação em que a aprendizagem de prática de direção veicular poderá ser realizada com qualquer motorista habilitado há pelo menos três anos na categoria que pretende ensinar (ou seja, como previam os Códigos de 1941, com a única diferença do tempo mínimo de habilitação do “instrutor”).

Trata-se do PL n. 3.781/19, de autoria do Deputado Federal General Peternelli (PSL/SP), que propõe alterações no artigo 141 do CTB. Embora tenha gerado bastante especulação e comentários antagônicos a respeito do acerto (ou desacerto) da proposta, como se a ideia já estivesse prestes a ser implantada, a sua tramitação nos demonstra que ainda há um longo caminho pela frente. Isto porque, como se pode ver nas informações disponibilizadas pela própria Câmara dos Deputados [1], a proposição foi apensada a outro PL, de n. 2.471/19 (Dep Fed Abou Anni – PSL/SP), que traz uma mudança um tanto quanto conflituosa com a retirada da obrigatoriedade de aulas em CFC, que é a exigência de que os “Cursos de aprendizagem relativos ao processo de habilitação” sejam realizados, unicamente, na modalidade presencial – ora, se houver exigência da presença do candidato, é porque os Cursos continuarão sendo obrigatórios…

Isto significa que o primeiro debate a ser travado entre os parlamentares será para decidir qual a melhor proposta legislativa: desobrigar a realização dos Cursos ou limitá-los à modalidade presencial, ou, ainda, a adoção de uma solução intermediária, que contemple ambas as ideias externadas pelos autores dos citados Projetos: exigir o Curso teórico, de forma presencial (já que não faz sentido se falar em Curso de prática de direção veicular a distância), e permitir a escolha do candidato quanto às aulas práticas: de forma autônoma ou em uma Autoescola.

Há, entretanto, um problema maior, no atual direcionamento destes dois PLs pela Mesa Diretora da Câmara dos Deputados, que, se não sanado, implica em uma não avaliação rápida destas propostas: os dois Projetos, agora apensados um ao outro, NÃO foram direcionados para Comissão de Viação e Transportes, para designação de relator específico para esta matéria, mas se entendeu por bem apensá-los a um 3º PL: o de n. 3.385/15 (Dep Fed Mário Negromonte Jr. – PP/BA), que versa sobre outro assunto bem polêmico (e com proposta contrária ao entendimento do atual Presidente da República, bem como ao que já consta da mais recente Resolução do Contran sobre o tema, de n. 778/19): o Projeto pretende incluir no CTB a obrigatoriedade de aula em simulador de direção veicular antes do início das aulas práticas diretamente no veículo (o que, obviamente, aniquilaria a pretensão de aulas totalmente autônomas).

E não para por aí: este PL n. 3.385/15 encontra-se apensado a outro PL, de n. 2.741/03 (Dep Fed Luis Carlos Heinze – PP/RS), que, importante ressaltar, nada tem a ver com processo de formação de condutores, mas pretende inserir, no CTB, obrigatoriedade de que a embalagem dos produtos de telefonia celular contenha mensagem de advertência sobre o perigo à segurança viária de dirigir utilizando o telefone celular. Ou seja, a anexação das Propostas não se deu pela similaridade temática, mas simplesmente por ambas tratarem de alterações no CTB.

Exatamente por este motivo (por serem alterações do CTB), o PL n. 2.741/03, por sua vez, está apensado, juntamente com outros 225 Projetos de Lei, ao PL n. 8.085/14, que se originou, curiosamente, a partir de um Projeto aprovado pelo Senado que tratava da formação de condutores, com modificação no artigo 158 proposta pela Senadora Ana Amélia, mas que, ao chegar na Câmara dos Deputados, se converteu em um amontoado de Projetos de Lei com diversas alterações no CTB, o que motivou a Câmara a considerá-lo como um novo Código de Trânsito, tendo sido criada uma Comissão Especial para análise conjunta de todos estes Projetos.

Ocorre, porém, que esta Comissão chegou a apresentar um relatório prévio, além de ter realizado diversas audiências públicas, mas foi dissolvida com a mudança de legislatura, no início deste ano; destarte, o PL n. 8.085/14 (e todos os seus anexos) encontra-se estagnado, até o presente momento, aguardando criação de nova Comissão especial [2]. Enquanto isso, a discussão sobre um novo Código de Trânsito se direcionou à Comissão especial, já criada, para analisar o Projeto de Lei enviado pelo Presidente da República ao Congresso, de n. 3.267/19 (e que, pelo menos em um primeiro momento, não trazia a perspectiva de formação autônoma dos condutores) – embora a Comissão se destinasse à análise e relatoria de um total de 27 mudanças no CTB pretendidas pelo Presidente, desde o início de seus trabalhos já se começou a falar em novo Código de Trânsito (desprezando-se, inclusive, o trabalho que já havia sido iniciado com o PL n. 8.085/14), tendo sido apresentados, pelos 34 Deputados que compõem a Comissão, um total de 228 Emendas.

Ou seja, hoje, o PL que tanto se fala sobre “extinção das Autoescolas” está anexado a propostas antagônicas ao que se pretendia e, pior, refém de uma tramitação que, ao que tudo indica, não terá continuidade em um horizonte de curto prazo. Para que ele tenha uma análise célere do parlamento, deveria ser desapensado do PL n. 8.085/14, para ser relatado separadamente, ou, então, apensado ao PL n. 3.267/19, que, atualmente, é o que está com maior empenho da Câmara.

Não obstante esta constatação sobre a tramitação legislativa atual, retomo o título deste texto para propor uma reflexão aos meus leitores: existe uma possibilidade real de modificação do processo de formação de condutores, com impacto direto no segmento empresarial das Autoescolas. Tal constatação não se deve à premência com que o assunto será redesenhado na nossa legislação, mas à inevitável conformação do ser humano às suas reais necessidades, que se modificam ao longo do tempo, aliada à evolução tecnológica que nos induz a novas formas de convivência social e experiências com o mundo que nos cerca.

Como já falei, em um dos Episódios do meu Podcast (bit.ly/jmpodcast34), assim como ocorreu com as antigas Escolas de datilografia, com as lojas de venda e revelação de filme fotográfico, com as locadoras de filmes em VHS, ou com as empresas de transmissão de mensagem via pager, é natural que a oferta de produtos e serviços tenha que se adequar às novas tecnologias e à demanda existente.

Uma constatação simples: atualmente, tanto o desejo quanto a necessidade de se possuir uma Carteira de Habilitação ou de ser proprietário de um veículo automotor, não têm a mesma intensidade, para os indivíduos em geral, que de alguns anos atrás. Como será quando for uma realidade ainda mais latente a presença de veículos autônomos nas vias públicas?

Neste cenário de transformação, qual é o verdadeiro papel das Autoescolas? Alguém que deseja se habilitar busca exatamente o quê ao procurar um CFC? É possível obter o mesmo conjunto de informações e de habilidades sem passar pela entidade de formação? Qual é o interesse do Estado, antes de conceder a licença para conduzir a alguém, além de se certificar de que ele está em condições de dirigir veículos, de maneira segura, na via pública? A qualidade de nossos motoristas melhorou na mesma intensidade das mudanças normativas? O motorista de hoje, após passar por um CENTRO DE FORMAÇÃO DE CONDUTORES (com letras todas maiúsculas, dada a sua importância) sai mais preparado para dirigir com SEGURANÇA ou tanto faz se ele aprendeu com o CFC ou com um amigo ou parente? Além de saber manusear os comandos do veículo, o que mais ele deveria APRENDER? A FORMAÇÃO de condutores começa somente com o CFC ou está intrinsecamente ligada à FORMAÇÃO DO CIDADÃO? O objetivo principal de mudanças no processo deve levar em consideração a desburocratização e diminuição de custos (justificativas que têm sido utilizadas pelo Poder Executivo federal) ou aumento da SEGURANÇA?

Em minha opinião, as respostas a estas perguntas é que devem nortear, por parte do poder público, as eventuais mudanças no processo de formação de condutores e, por parte dos profissionais do setor, a reformulação dos serviços oferecidos.

A Autoescola pode até acabar, da maneira como a conhecemos hoje, mas, como em qualquer outra área do saber, enquanto houver o que se aprender, haverá espaço para atuação daquele que se dispõe a ensinar…

[1] Disponível em https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2209908. Acesso em 21out19.

[2] Disponível em https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=749470&ord=1. Acesso em 21out19.

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