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Trânsito no Brasil: falta cultura de segurança e sobram achismos


Por Artigo Publicado 23/08/2019 às 03h00 Atualizado 08/11/2022 às 22h00
 Tempo de leitura estimado: 00:00

*Luís Carlos Paulino

Formação de condutoresOs profissionais atuantes na formação de condutores não ignoram a necessidade de atualizações nos procedimentos relativos à formação/capacitação dos atuais e dos futuros condutores. Foto: Divulgação.

Recentes declarações do presidente Bolsonaro, num tom de crítica ao processo de formação de condutores (vide nota abaixo[1]), somadas ao também recente projeto de lei do deputado federal General Peternelli (PL nº 3781/2019, objetivando promover mais uma alteração no já deveras remendado Código de Trânsito Brasileiro[2]), demonstram uma acentuada preocupação do chefe do executivo e de parte de seus aliados políticos com o impacto financeiro que o processo de habilitação tende a produzir no bolso do cidadão que a ele se submete. E esse viés econômico, convenhamos, é algo que deve, sim, ser considerado!

As falas do senhor presidente acerca do tema trânsito já são bastante conhecidas, tornando até dispensável que façamos aqui transcrições outras. Geralmente são opiniões provocativas emitidas com esteio em suas próprias crenças e voltadas a atingir um determinado objetivo. Os fundamentos, não raro, são encontrados apenas na justificação intangível e subjetiva do “eu acho que…”. Ocorre que, em se tratando da autoridade por ele representada, esses posicionamentos tendem a gerar grande repercussão.

Por sua vez, o deputado General Peternelli aduz, a título de justificativa ao já mencionado PL, que “a obrigatoriedade de frequência às aulas, tanto teóricas quanto práticas, tornou o processo de habilitação extremamente caro no Brasil”. Mais: “dependendo da quantidade de aulas práticas ministradas, esse custo pode facilmente chegar aos três mil reais, um valor incompatível com os ganhos da grande maioria dos cidadãos brasileiros, principalmente os jovens”. Eis que nos deparamos, mais uma vez, com a justificativa de ordem econômica. São argumentos atraentes, não se pode negar.

No entanto, caso fôssemos propor um debate sobre o trânsito brasileiro e as externalidades negativas que ele ocasiona (as mortes, os traumas e as sequelas permanentes, a poluição, os prejuízos de ordem material e os impactos nos orçamentos da saúde e da previdência etc.), acreditamos que contra-argumentos bastante sólidos, inclusive na perspectiva econômico-financeira, nos socorreriam.

Se fatos (e não meros achismos) fossem levados em conta e se os detentores do poder de mando tivessem boa vontade de promover as mudanças visando, numa perspectiva mais ampla, melhorar o processo de formação dos condutores, quem sabe até conseguiríamos descortinar a caixa-preta do FUNSET (para além daquela do BNDES, que parece ser objeto de fixação do presidente).

Os fatos, sabemos, são incômodos. Todavia, já se disse que “a realidade tem primazia sobre os mecanismos”. Negar evidências que facilmente se extraem da análise do trânsito brasileiro não modifica para melhor a realidade que está posta. Ao contrário, tende a agravá-la. A preferência por ser contra as regulamentações – menos exigências, menos fiscalização, mais liberdade, mais velocidade etc. – pode mostrar-se viável em outras áreas. No trânsito, no entanto, ela é arriscadíssima!

Que tal se fazer uso de parte dos recursos arrecadados via fiscalização de trânsito para melhorar o que já existe, inclusive no tocante à formação dos condutores? Afinal, é inquestionável que o processo de formação dos condutores brasileiros pode – e deve – ser aperfeiçoado. Nesse particular, constata-se que há quase um consenso.

Cabe aqui pontuar que uma tentativa de otimizar o processo ocorreu não faz muito tempo. A maioria das pessoas que se dedicam ao estudo do binômio trânsito-mobilidade, em especial aquelas que direta ou indiretamente atuam na formação dos condutores, lembra da natimorta resolução 726/2018, do modo como foi construída e de como restou fulminada por uma declaração do então ministro das cidades Alexandre Baldy – posteriormente formalizada numa deliberação do Contran (a 168/2018).

A referida resolução 726 propunha significativas alterações no processo de formação, especialização, renovação e reciclagem dos condutores. Tratava-se de uma norma que, no geral, aperfeiçoaria o procedimento. Ademais, elaborada com significativa participação de especialistas[3] e das demais pessoas interessadas. Nesse contexto, uma resolução democraticamente edificada! Ao final, como todos sabem, entendeu alguém de pendurar num galho da frondosa árvore um jabuti (na forma de curso e prova para a renovação da CNH) e o governo, que poderia mandar retirar o jabuti, optou por mandar derrubar a árvore.

Os profissionais atuantes na formação de condutores não ignoram a necessidade de atualizações nos procedimentos relativos à formação/capacitação dos atuais e dos futuros condutores. No entanto, busquemos ser justos em nossas análises: o déficit nesse processo e o descompasso entre o que ele deveria ser e o que de fato ele é, devem-se, em grande parcela, às regras vigentes, e não aos profissionais que a ele se dedicam. Em especial, não podem ser atribuídos aos proprietários de CFCs e nem aos instrutores que neles atuam.

O sistema deveras engessado e em muitos aspectos desatualizado não tem muito espaço para a criatividade. Se numa prova aplicada pelo Detran ainda costuma vir uma questão tratando sobre a exigência do kit de primeiros socorros e o gabarito (aproximadamente 20 anos depois da revogação da obrigatoriedade dessa “tralha”) afirma que persiste a exigibilidade, o máximo que se pode fazer no CFC é dizer aos alunos que a alternativa correta, para efeitos de avaliação, será a incorreta (pasmem!) – e que é assim mesmo que funciona o “sistema”, algumas vezes o certo é o errado e vice-versa.

Já quase finalizando, há que se registrar algo muito positivo resultante das iniciativas do presidente Bolsonaro e do deputado Peternelli: voltamos a debater a formação dos condutores. O assunto tornou-se pauta obrigatória diária para a imprensa e para os “indesejáveis” especialistas. As categorias profissionais que podem vir a ser afetadas pelas propostas de mudanças também estão discutindo, se movimentando e compreendendo melhor aquilo que costumamos afirmar: a zona de conforto e o progresso são inconciliáveis.

Por falar em compreender (e aqui encerrando, de fato, nossa reflexão), recordo-me que, por ocasião da celeuma envolvendo a resolução 726, ponderávamos, não sem uma pitada de sarcasmo, que ou a norma traria alterações desnecessárias e não melhoraria em nada o processo de habilitação e – nesse caso, o Contran sequer deveria ter promovido sua homologação/publicação – ou o ministro Baldy cometera um equívoco. Afora isso, nos restava a hipótese de que ambos teriam acertado e nós todos, pobres mortais metidos a estudiosos e especialistas que, vez por outra, ousamos questionar o “sistema”, não somos suficientemente inteligentes para compreender como as engrenagens funcionam. Será que algum dia compreenderemos?

[1] As colocações foram feitas pelo presidente em uma transmissão ao vivo no final de julho de 2019, quando Bolsonaro afirmou: “eu, com dez anos de idade, aprendi a dirigir trator na fazenda em Eldorado Paulista. E acho que nem devia ter exame de nada. Parte escrita apenas e ir para prática logo. Não tem que cursar autoescola, ter aula de um monte de coisa que já sabe o que vai acontecer.”

[2] Tornando facultativa a realização do curso de formação de condutor em um centro especializado nessa atividade e devidamente estruturado para isso, além de deixar a cargo do próprio aprendiz decidir como e com quem deseja realizar as imprescindíveis aulas de prática de direção veicular.

[3] Cabe pontuar que o atual presidente, alinhado com o que praticavam seus antecessores, já declarou que estudiosos e especialistas não devem ser levados em consideração, num assunto que, não se pode olvidar, é predominantemente técnico.

* Luís Carlos Paulino é professor especialista em Gestão e Direito de Trânsito e consultor da FENASDETRAN

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