O tráfego intenso de veículos e pessoas antes e depois das aulas faz parte do realidade diária de muitas escolas brasileiras, especialmente as localizadas nas capitais e em cidades de médio porte. Não faltam filas de carros de pais que querem deixar os seus filhos ou então buscá-los depois de uma manhã intensa de estudos. Por falta de planejamento ou até saturação das vias, esse simples ato acaba se transformando numa estressante atividade. E o pior: é comum que esse transtorno localizado ultrapasse os arredores da instituição de ensino e alcance outras vias, o que acaba comprometendo o trânsito da localidade como um todo. Foi contra esse problema, também observado em um clube esportivo espanhol, que o seu dirigente e um grupo de amigos resolveu apostar numa solução para a questão: a criação de um projeto de rotas escolares.
Tendo como pontapé inicial a resolução dos congestionamentos, o projeto de criação de caminhos escolares teve como principal objetivo fomentar a ida à escola dos estudantes à pé. Foi assim que esse centro esportivo localizado na pequena cidade de Godella, pertencente à área metropolitana de Valência, na Espanha, resolveu criar o projeto Cien Pies, no ano passado. O mais interessante, no entanto, é que a iniciativa vai muito mais além da questão do trânsito. Ela surge com uma série de outros propósitos, todos caminhando numa direção que busca a melhoria das relações sociais da população com a humanização das ruas, das vias e de toda a comunidade.
Desenhada para não ultrapassar os 2,5 km de distância até a escola, o ponto de partida da rota tende a ser um local central onde os pais de alunos podem deixar os seu filhos aos cuidados de um monitor especializado que guiará os estudantes até a instituição de ensino. Registrado pela escola, cada profissional conta com a ajuda de outros dois voluntários para guiar grupos de cerca de 30 estudantes. No caso das escolas de Godella, esses voluntários são pessoas aposentadas que foram mapeados e que vivem nas redondezas ou então, mães de alguns alunos que são donas de casa e dispõem de tempo para a atividade.
“As rotas à pé funcionam como as de um transporte público. Ou seja, elas têm uma partida inicial e paradas intermediárias. A diferença é a presença de guias profissionais que estimulam o contato das crianças com os outros cidadãos e com as vias públicas”, explica, ao Porvir, o economista especializado em urbanismo Ramón Marrades, um dos idealizadores desse projeto que tem fins sociais. Com duração que não chega a alcançar 30 minutos de caminhada, a rota foi pensada em conjunto com a prefeitura da localidade e contou com colaboração de comerciantes e antigos moradores da região. Dessa forma, no trajeto até a escola, os alunos têm acesso, de forma lúdica, a informações históricas, culturais, além de contato com os próprios comerciantes.
Durante a construção da rota são feitos contatos com os comerciantes dispostos a abrir o seu espaço para o “pit-stop do xixi” e claro, para explicar o seu ofício aos estudantes. Uma proposta que se assemelha à ideia defendida pela filósofa Viviane Mosé em entrevista concedida ao Porvir em setembro. Na ocasião, ela defendia a importância da escola se apropriar mais da cidade, e nesse contexto, os comerciantes teriam papel fundamental.
“Os alunos, além de realizarem uma atividade física saudável e sustentável, ainda aproveitam o caminho da rota para aprender sobre cidadania e cultura urbana. Sem falar do ganho que eles vão ter ao se relacionar com alunos de outras séries que estudam no mesmo colégio”, explica Marrades. Segundo ele, essa atividade já poderia ser considerada “a primeira lição do dia” da escola.
Implantado em outros dois colégios valencianos, o projeto Cien Pies se junta a outras iniciativas, como o The Walking Bus, na Inglaterra, e o Pedibus, na Itália, que buscam estimular não só a ida de estudantes a pé como também o contato deles com as pessoas e a localidade em que vivem. Ou seja, iniciativas que visam a apropriação da cidade enquanto ambiente de aprendizagem pelos pequenos. “Trata-se de uma primeira ideia que saiu do nosso Laboratório Experimental de Transporte Sustentável, a empresa que resolvemos criar para pensar o projeto. Para nós, o Cien Pies é um instrumento prático de educação social”, comenta, em vídeo, Alfredo Gimenéz, dirigente do clube esportivo de Godella e cofundador do Cien Pies.
Outras vantagens
Além dessa aula de cidadania e de um contato mais próximo das pessoas que vivem no mesmo bairro, os idealizadores do projeto Cien Pies ainda destacam outras vantagens de iniciativas como essa: a diminuição do sedentarismo e da obesidade infantil a partir da realização da atividade física da caminhada. Sem falar na economia de combustível e na diminuição do stress dos pais que não precisariam se preocupar com os congestionamentos nas portas da escolas.
Atividades interdisciplinares também podem ser sugeridas durante o trajeto. Nas aulas de matemática, por exemplo, os alunos aprendem a calcular a quantidade de CO2 que os carros dos seus pais deixam de emitir caso os alunos optem em ir à escola a pé. Ou então, durante o trajeto, os estudantes simulam serem guardas de trânsito. Se algum carro estiver bloqueando a calçada, eles têm direito a aplicar multas simbólicas. “E tudo isso é feito com o auxílio dos monitores. Que com o projeto acabam ganhando um novo trabalho que faz uma grande diferença em suas vidas”, fala Marrades.
Segurança e custo
Questionado sobre se esse projeto é viável de ser aplicado em países com problemas sociais e de infraestrutura urbana como o Brasil, Ramón Marrades foi direto: “a introdução de dinâmicas de uso do espaço público estimula a melhoria desse espaço. Tenho conhecimento da realidade do Equador e vi que é perfeitamente possível aplicar um projeto como o Cien Pies no Brasil”. No entanto, ele lembra que é preciso limitar o uso do transporte privado, melhorar as condições de locomoção dos pedestres e ciclistas, além de melhorar a segurança pública.
Ciente que a questão na segurança é um das principais razões que impedem os pais de deixarem seus filhos participarem do projeto, o Cien Pies resolveu cobrar uma pequena taxa mensal dos alunos inscritos. A partir da mensalidade de cerca de R$ 50, paga-se o monitor especializado na área de educação, os voluntários participantes que compõe a equipe, além de seguros de vida para o grupo de alunos. Adicionalmente, com a quantia, está sendo desenvolvido um aplicativo acoplado a o smartphone do guia que permite o rastreamento dos alunos pelos pais. Por fim, para garantir a integridade física dos alunos, os instrutores estão em contato direto com guardas policiais que ficam situados próximos às escolas.
“Agora que já conseguimos estruturar esse modelo de projeto, estamos buscando financiamento internacional para sua expansão aqui na Espanha e em outros países. Sabemos que o que inventamos não é extremamente novo, mas conseguimos validar a iniciativa de uma maneira que faz com que uma simples atividade produza situações emotivas todos os dias, capazes de melhorar imediatamente a qualidade de vida das pessoas e o estado das cidades”, diz Ramon, durante vídeo de agradecimento que fez ao receber o prêmio Jovens Empreendedores Sociais, concedido pela Universidad Europea de Madrid por conta do projeto.
Fonte: Jornal do Brasil