Covid-19: o retrato, além das estatísticas, do dia a dia dos motociclistas profissionais
Não se sabe, ainda, como a falta de segurança no trânsito, a Covid-19 e o aumento da carga de trabalho poderão impactar na saúde física e mental dos motociclistas profissionais. Leia a reportagem especial do Portal do Trânsito.
Mariana Czerwonka
Pauline Machado
O motociclista é um dos elementos mais frágeis do nosso trânsito. O número de acidentes envolvendo motociclistas só aumenta. A formação, tanto para obtenção da CNH como a profissional, é negligenciada e está longe de ser a ideal. Todas essas informações são de senso comum. Muitos sabem, mas poucos conseguem efetivamente mudar esse quadro.
O que não se sabe, ainda, é como a falta de segurança no trânsito, a Covid-19 e o aumento da carga de trabalho poderão impactar na saúde física e mental desse profissional que não deixou de circular nas ruas brasileiras durante toda a pandemia.
Conforme estudo elaborado pelo Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese), o número de entregadores e motoboys cresceu 3,5% em todo Brasil em 2020.
A pesquisa mostrou ainda que o país já conta com 950 mil motoboys e entregadores que atendem por aplicativos.
Não há dados específicos sobre o quanto a exposição desses profissionais resultou em casos de internações ou mortes por Covid-19, mas para se ter uma ideia, segundo um levantamento feito para o EL PAÍS pelo estúdio de inteligência de dados Lagom Data, com base em informações do Ministério da Economia, no caso de frentistas de posto de gasolina, por exemplo, houve um salto de 68% na comparação das mortes entre janeiro e fevereiro de 2020, pré-pandemia, e dois dos piores meses da crise sanitária, no início de 2021. O mesmo levantamento mostra que entre motoristas de ônibus houve 62% mais mortes.
Por todos esses motivos, o Portal do Trânsito foi às ruas para tentar entender quais são os maiores desafios enfrentados pelos motociclistas profissionais. Além disso, saber como estão enfrentando a doença que está afetando o dia a dia e como enxergam o cenário atual da categoria.
Para Rodrigo Vargas, psicólogo especialista em trânsito, a pandemia, o estresse que isso tem causado, tanto à saúde mental quanto financeira, pode estar contribuindo efetivamente com o aumento de mortes envolvendo motociclistas no Brasil.
“A acidentalidade no trânsito é multicausal, ou seja, é influenciada por diversos fatores, sejam eles socioeconômicos, culturais, políticos ou mesmo psicológicos. O trânsito, por si só, já é um fator estressor imenso, sobretudo em grandes centros urbanos. Com o surgimento da pandemia do Covid-19 e todos os percalços a ela intrínsecos, adicionou-se a essa “receita para um trânsito violento” mais dois perigosos ingredientes: o estresse causado pelas influências financeiras da pandemia na economia e, principalmente, a percepção de muitos condutores de esvaziamento das vias, o que, em muitos casos, acaba gerando excessos de velocidade”, diz.
Para o especialista, o processo de formação de condutores dessa categoria é apenas uma das arestas a serem aparadas no poliedro de problemas que é o trânsito brasileiro.
Para ele, as adversidades começam muito antes da formação e tampouco terminam com ela. “Porto Alegre, por exemplo, embora tenha uma frota relativamente pequena de motocicletas (em torno de 11,5% do total de veículos), registrou em 2020, segundo dados do Programa Vida no Trânsito, mais de 40% do total de vítimas fatais envolvendo motociclistas. Não pretendo me aprofundar no polêmico tema que é a formação de condutores da categoria A. Mas, sabendo que o processo de formação para essa categoria não é o ideal, imagine quando esses condutores sequer passam por esse processo!”, explica.
Conforme Vargas, somente entre janeiro e março desse ano, a metade dos motociclistas que perderam a vida na capital gaúcha não tinham Carteira Nacional de Habilitação (CNH).
“É necessário que se invista maciçamente em formação continuada, desde antes do processo de formação de condutores, já nas escolas de ensino fundamental, passando pela qualificação do processo de formação de condutores dessa categoria, e seguir com esse processo mesmo após a obtenção da CNH, através da qualificação constante desses profissionais, por parte dos empregadores. É inadmissível que, nos dias de hoje, um profissional atue no trânsito sem ter, ao menos, a Carteira Nacional de Habilitação”, argumenta.
O psicólogo se mostra preocupado, também, com as alterações recentes do CTB.
“A acidentalidade de trânsito é influenciada por fatores não só socioeconômicos, culturais, políticos, mas também psicológicos, esse talvez seja na atualidade o melhor exemplo. Toda e qualquer mudança que seja implementada e que possa passar à sociedade a ideia ou a mensagem de um relativo afrouxamento no rigor de alguma norma de trânsito é preocupante”, expõe.
Já quanto ao prazo de validade da CNH, Vargas é enfático.
“Uma vez que diversos especialistas mundo afora afirmam categoricamente que mais de 90% dos acidentes de trânsito são causados por causas humanas, me questiono: enquanto sugere-se que os componentes mecânicos de um automóvel sejam revisados anualmente para a segurança dos ocupantes do veículo, é prudente que a “peça” que mais causa acidentes seja revisada a cada 10 anos?”, questiona o especialista.
E as estatísticas?
As estatísticas mostram exatamente essa realidade. De acordo com uma reportagem da Folha de São Paulo, o número de motociclistas mortos no trânsito na capital paulista deu um salto de 16% em 2020, contabilizando 345 óbitos, contra 297 registrados em 2019.
Ainda segundo a reportagem, outro dado de grande impacto é que o número de motociclistas mortos em acidentes em 2020 supera o de pedestres, o que havia ocorrido apenas uma vez em toda a série histórica da Companhia de Engenharia de Tráfego – CET.
Um estudo do Instituto Sou da Paz, elaborado com base em dados do Infosiga SP – Sistema de Informações Gerenciais de Acidentes de Trânsito do Estado de São Paulo, do governo do estado – divulgou, entre outros dados, a proporção de mortes por tipo de vítima em relação ao total na cidade e no estado de São Paulo, conforme dados abaixo.
Proporção de mortes por tipo de vítima em relação ao total na cidade de SP – 2019
- Pedestre – 48%
- Motociclista – 33%
- Ocupante de automóvel – 11%
Proporção de mortes por tipo de vítima em relação ao total na cidade de SP – 2020
- Motociclista – 42%
- Pedestre – 32%
- Ocupante de automóvel – 19%
Proporção de mortes por tipo de vítima em relação ao total no estado de SP – 2019
- Motociclista – 35%
- Pedestre – 27%
- Ocupante de automóvel – 23%
Proporção de mortes por tipo de vítima em relação ao total no estado de SP – 2020
- Motociclista – 41%
- Ocupante de automóvel – 24%
- Pedestre – 22%
Fonte: Infosiga SP/Instituto Sou da Paz
E isso não vem acontecendo somente em São Paulo. Em Curitiba, por exemplo, a Prefeitura registrou 181 mortes no trânsito no primeiro ano da pandemia. De acordo com o ranking, 69 motociclistas (38,1%), e 65 pedestres perderam a vida. Na sequência, aparecem 29 ocupantes de automóvel e 15 ciclistas. Duas vítimas que estavam dentro de ônibus e uma em um caminhão.
Apesar da redução de 41,6% nas mortes registradas no trânsito da capital paranaense na última década, no ano passado houve aumento de 7% na comparação com o ano anterior, ocasião em que foram registradas 169 mortes, apesar da pandemia e do menor fluxo de veículos nas ruas.
A superintendente de Trânsito de Curitiba, Rosangela Battistella, atribui os casos ao aumento da velocidade desenvolvida pelos motoristas, entre outros fatores.
“Com a pandemia, apesar da redução do trânsito de veículos particulares, principalmente, devido a suspensão das aulas, aumentou o número de motos em circulação para fazer entregas. E, também, com menos carros nas ruas, aumentou a velocidade desenvolvida pelos motociclistas e motoristas em geral”.
Medidas de redução
Diante dos dados, Battistella enfatiza que a cidade vem adotando a redução da regulamentação da velocidade em vias de tráfego prioritário, como binários, reduzindo vias que antes tinham regulamentação de 60km/h para 50km/h, atendendo apelo da OPAS – Organização Panamericana da Saúde em reduzir as velocidades em áreas urbanas. O objetivo é diminuir registros e gravidade dos acidentes. “Além disso, houve a implantação das ‘motocaixas’ antes das faixas de pedestres em cruzamentos semaforizados de diversas vias da cidade, de forma a priorizar a parada do modal motocicleta e garantir a saída dos motociclistas antes dos veículos, na abertura do semáforo, proporcionando maior segurança a todos”, detalha.
Cuidados por parte dos motociclistas e pedestres
A superintendente de Trânsito de Curitiba orienta que outra forma de diminuir esses números é tendo, os motociclistas, a consciência de que trafegam em um modal mais frágil de deslocamento e, portanto, devem circular em velocidade compatível com a via, onde qualquer desrespeito à sinalização ou abuso pode ter como consequência um acidente com vítimas fatais ou com grandes sequelas.
Por parte dos pedestres, estes devem, de acordo com Battistella, andar sempre pela calçada. Ou, na falta dela, em local bem próximo do alinhamento predial, de forma a não competir com os demais modais de deslocamentos. Além disso, procurar atravessar sempre nas faixas de pedestres. “De antemão, compete aos motoristas de veículos particulares, táxis, aplicativos, do transporte coletivo e outros, respeitar a sinalização existente nas vias, em especial à regulamentação de velocidade máxima permitida, bem como cuidar e dar preferência de passagem aos pedestres e aos ciclistas, que fazem parte da cadeia mais frágil de modais de deslocamentos”, reforça.
Impactos da pandemia no trânsito das cidades brasileiras
De acordo com ela, a pandemia pode fazer a cidade repensar, como um todo, a questão da mobilidade. Não só a mobilidade através de veículos a combustão, como também a mobilidade ativa, através dos deslocamentos feitos por pedestres e ciclistas. “O Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (Ippuc) está desenvolvendo projetos de alargamento de calçadas em vias com grande concentração de pedestres. Além disso, projetos para ampliar, significativamente, as estruturas cicloviárias. A Setran, por seu lado, está recuperando a sinalização de estruturas cicloviárias antigas e implantando novas. Dessa forma, priorizaremos este modal menos poluidor e mais ecológico”, ressalta e finaliza a superintendente de Trânsito de Curitiba, Rosangela Battistella.