O que já avançamos e o que ainda precisamos melhorar no que tange à mobilidade urbana no Brasil? Leia entrevista exclusiva com o diretor do Centro de Estudos FGV Transportes, Marcus Quintella.
No Brasil, desde o início dos anos 2000, o mês de setembro foi escolhido, simbolicamente, como o mês voltado para maior atenção aos problemas e soluções para os deslocamentos das pessoas nos centros urbanos, cuja inspiração foi o Dia Mundial Sem Carro, criado na França, em 1997.
Hoje, diversas cidades do mundo promovem ações para repensar e discutir as políticas públicas de transportes públicos e ocupação, reordenamento e uso do solo, com o objetivo primordial de favorecer a mobilidade urbana.
Para traçar um panorama sobre o que já avançamos e sobre o que ainda precisamos melhorar no que tange à mobilidade urbana no Brasil, conversamos com exclusividade com o diretor do Centro de Estudos FGV Transportes, Marcus Quintella.
Dentre alguns pontos importantes citados durante a nossa conversa, o executivo ressalta o quanto o transporte urbano multimodal, integrado, abrangente, barato e ecológico transforma positivamente uma cidade e é fundamental para a melhoria da qualidade de vida das pessoas.
“As cidades precisam contar com uma infraestrutura viária e cicloviária com sinalização e controle de tráfego inteligente, interfaces eficientes que permitam a integração multimodal e ofereçam conforto, segurança, serviços, comércio, bancos, restaurantes, assim como soluções inovadoras e criativas, como teleféricos, esteiras rolantes, elevadores de grande capacidade, bicicletas públicas, etc. Devem pensar, ainda, nas restrições e limitações ao transporte individual nas zonas centrais, calçadas confortáveis, niveladas, sem buracos e obstáculos, para atender as viagens a pé ou em cadeiras de rodas, e na educação continuada a partir do ensino fundamental. Sem mobilidade urbana não há desenvolvimento econômico e bem-estar, nem atendimento das necessidades básicas da população”, afirma.
Acompanhe a entrevista na íntegra.
Portal do Trânsito – Desde que foi instituído setembro como o mês da Mobilidade Urbana, lá em 1997, o que mudou nos grandes centros brasileiros?
Marcus Quintella – Lamentavelmente, pouco se avançou desde então. Na prática, surgiram muitos planos e promessas políticas, mas as cidades brasileiras continuam excessivamente problemáticas na questão da mobilidade urbana, visto que as pessoas sofrem diariamente em seus deslocamentos para ir ao trabalho, às escolas, aos hospitais, ao comércio e aos locais de lazer.
As metrópoles brasileiras ainda não possuem um sistema de transportes abrangente, confortável e integrado de forma física e tarifária. Por exemplo, no trajeto casas-trabalho-casa, os tempos de viagem continuam absurdamente elevados nas grandes cidades brasileiras, podendo chegar a cerca de duas horas e meia, no pico da manhã, e outras duas horas e meia, no pico da tarde-noite. As perdas de tempo e os danos físicos e psicológicos com a precariedade da mobilidade urbana afetam sobremaneira a qualidade de vida da população.
Portal do Trânsito – Por favor, nos dê um panorama comparativo entre os avanços e ações em prol da mobilidade urbana no Brasil e em outros países.
Marcus Quintella – O melhor comparativo é em relação às extensões das redes metroviárias das cidades brasileiras e de outras grandes cidades pelo mundo afora. Na China, Xangai, Pequim e Guangzhou possuem, respectivamente, 570 km, 450 km e 260 km de linhas de metrô. Nova Iorque tem 465 km de linhas metroviárias, Londres, 270 km, Tóquio, 329 km, Moscou, 325 km, Seul, 326 km, Madri, 283 km, Paris, 214 km, e Santiago do Chile, 130 km. Já São Paulo, maior metrópole da América Latina, contabiliza apenas 96 km de linhas de metrô. Os maiores e melhores sistemas de transporte do mundo têm por base o metrô.
Nas últimas décadas, as cidades europeias e asiáticas avançaram muito em mobilidade urbana com fortes investimentos em metroferrovias, que sustentam todo os seus sistemas de transporte público de massa.
Portal do Trânsito – Atualmente, quais são os maiores desafios quando pensamos em mobilidade urbana no Brasil?
Marcus Quintella – Entendo que os maiores desafios são políticos, pois precisamos urgentemente de um plano nacional de mobilidade urbana definitivo, apolítico, apartidário, consistente, tecnicamente elaborado e comandado por uma autoridade federal única, que teria sob sua subordinação as autoridades metropolitanas únicas de cada estado brasileiro. Certamente, caso isso não aconteça, continuaremos com sistemas absurdamente desconexos, incompetentes e inviáveis, à mercê da vontade e capricho de cada governante que esteja no poder. Pensar mobilidade urbana é planejar, executar, gerenciar e corrigir rumos, de forma contínua, com visão sistêmica, a partir de sistemas de transportes abrangentes, integrados e econômicos, com objetivo único de melhorar a qualidade de vida da população.
O transporte público é o único serviço que participa de todas as atividades da sociedade, o tempo todo, todos os dias. Precisamos pensar na multimodalidade dos transportes nas cidades brasileiras, ou seja, sistemas de transportes que permitam os deslocamentos das pessoas com um único bilhete, utilizando quantos modos de transportes forem necessários para o trajeto desejado. Isso requer planejamento, integração física e tarifária e gerenciamento.
Portal do Trânsito – Que inovações e tendências podemos esperar tanto dos transportes de massa quanto dos relacionados à micromobilidade elétrica, pensando em contribuições para melhorias no trânsito e alternativas de ir e vir para a população brasileira?
Marcus Quintella – Como disse anteriormente, metrôs e trens devem ser a base de qualquer sistema de transporte de massa e não há novidade alguma nisso. As maiores tendências e inovações tecnológicas estão nos veículos, nos sistemas de sinalização, controle e gerenciamento de tráfego e nos aplicativos de transportes e meios de pagamento. Nos últimos anos, houve muita evolução tecnológica nos ônibus urbanos, especialmente aqueles dos sistemas BRT, e nos VLTs, cujas inovações acontecem em todo o mundo. Caso o Brasil tenha condições de investir em sistemas de transportes de massa modernos, todas essas tendências e inovações estarão disponíveis.
Quanto à micromobilidade, mais especificamente as bicicletas e patinetes, compartilhadas ou não, elétricas ou não, existem limitações físicas e financeiras para que atendam grande parte da população. Hoje, essa micromobilidade atinge cerca de 2% da matriz de transporte urbano no Brasil e as motocicletas chegam a 3%. Cabe lembrar que a maioria da população não possui condições físicas nem se dispõe a usar as bicicletas e patinetes como meio de transportes em seus deslocamentos diários nas grandes cidades, ainda mais que as distâncias percorridas são grandes, assim como as topografias e as dificuldades das vias não favorecem tais deslocamentos. As grandes cidades brasileiras, incluindo Rio de Janeiro e São Paulo, apesar de possuírem grandes malhas cicloviárias, ainda apresentam muitas deficiências para que a micromobilidade se desenvolva, tais como problemas de manutenção, continuidade, obstáculos, sinalização e segurança nas ciclovias e ciclofaixas.
A micromobilidade não serve para o transporte de massa, mas é importante para complementar os sistemas de transportes das cidades. Assim como o modo a pé, que depende de calçadas bem construídas, regulares e seguras.
Portal do Trânsito – Por fim, neste Mês da Mobilidade Urbana, há o que se comemorar ou não? Por favor, justifique a sua resposta.
Marcus Quintella – Infelizmente, não há muito a comemorar, pois ainda não possuímos os elementos fundamentais para que as redes de transportes de nossas grandes cidades sejam perfeitamente integradas e multimodais. Comemoraremos quando tivermos uma ampla gama de opções de viagem por diversas modalidades – caminhada, bicicleta, pequenos veículos elétricos, carros, ônibus, BRT, trens, metrôs, VLT, etc, com todas as opções seguras, bem planejadas e não poluentes, com transferências contínuas com tarifa única.