Vítimas de acidentes de trânsito na infância explicam traumas que ficaram
Crianças são vulneráveis ao trânsito e casos de sinistros podem virar trauma. Leia!
No Brasil, os sinistros de trânsitos contam, não só, histórias de perdas e sofrimento, mas também de sobrevivência e recuperação. Laura Caroline, Ana Beatriz Teixeira e Guilherme Macedo são três jovens, entre muitos, que quando crianças passaram por incidentes viários com seus familiares. No entanto, esses casos se destacam dentre as milhares de crianças brasileiras que não tiveram uma segunda chance.
Apesar de uma redução no número de sinistros de trânsito desde 2019, as taxas atuais desses acontecimentos ainda são preocupantes. Segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), 500 crianças morrem diariamente por incidentes de trânsito.
Engavetamento
Aos 9 anos de idade, quando estava atravessando a ponte JK, em Brasília, Laura Caroline, de 20 anos, estava com sua mãe Geralda Marciano no volante quando o carro sofreu um engavetamento.
“Eu estava escutando música com a minha mãe e olhando o lago. Do nada o carro da frente parou, e minha mãe gritou. Foi o prazo só de olhar pra frente, na direção do pára-brisa que o carro bateu. Foram sete carros, o que eu estava era o sexto”, relata Laura.
A jovem que estava atrás do banco do motorista, conta que, por causa da batida brusca que houve entre os carros da frente e de trás, foi jogada para frente com força, mas que o cinto a protegeu. “O cinto marcou meu pescoço, lembro que me machucou, ficou bem roxo, mas não precisei ir ao hospital.“
Ela ainda explica que apesar do incidente ter envolvido sete carros, e as vítimas terem se juntado para chamar a polícia e os bombeiros, nenhum culpado foi encontrado, pois o primeiro carro que parou bruscamente, fugiu do local. Laura acredita que a situação poderia ter sido evitada se sua mãe tivesse mantido uma distância maior do carro da frente e se o primeiro carro não tivesse parado bruscamente.
Além disso, ela chama atenção para a questão da velocidade, e destaca que o incidente poderia ter sido fatal se sua mãe estivesse a uma velocidade um pouco maior. “Lembro que minha mãe estava a 60 km/h, e o bombeiro disse que se ela estivesse a 80 km/h eu poderia ter morrido”.
A jovem conclui afirmando que não acredita que a redução da velocidade nas vias previna essas situações. “Não acho que a redução das vias iria resolver, porque as pessoas vão continuar dirigindo acima da velocidade independente da velocidade da via, e quando tiver um pardal, o motorista vai frear de uma velocidade alta para uma bem mais baixa. A chance de freadas bruscas aumenta ainda mais, na minha opinião”, diz Laura.
“Eu gritei”
Outro caso de sinistro de trânsito, também na capital do país, foi com Ana Beatriz Teixeira, em dezembro de 2016. Na época, com 12 anos, já residia em Brasília e estava com os tios do Rio de Janeiro no carro. Apesar de ter uma noção dos caminhos da cidade, ela explica que as sinalizações nas vias não ajudaram no dia.
“Eu tinha ido com meu tio-avô buscar alguns parentes no aeroporto, quando estávamos voltando que tudo aconteceu. A gente pegou a L4 e precisava pegar a entrada certa pra Ponte JK, apesar de eu achar que a entrada era a segunda, não tinha certeza, e a placa apontava para a primeira entrada (a errada). Quando eu vi a placa, gritei avisando que era pra entrar naquela que já tínhamos praticamente passado”, e continua “Meu tio jogou com tudo o carro para a entrada, mas era uma curva super fechada, e com isso o carro caiu num canteiro fundo que tinha entre as duas entradas”
A jovem, que estava sentada no banco do carona, acredita que apesar da falta de atenção dela e dos parentes, a grande causa do acidente foi a má sinalização neste percurso em direção a ponte.
Ela explica que por ser nova, o cinto de segurança ficava posicionado bem no pescoço e clavícula, e quando houve o incidente, ele a machucou. “O cinto de segurança machucou bastante minha clavícula, mas tratei com pomada para assaduras e dias depois fiquei bem”. Apesar disso, ela acredita que é de extrema importância a utilização do cinto, e outros métodos de proteção. “Se eu estivesse sem cinto, poderia ter sido bem pior”.
Ana Beatriz ainda destaca e chama atenção para essa questão da sinalização: “Acredito que a melhor sinalização das vias protege a vida tanto dos motoristas, quanto dos pedestres. Placas que podem confundir o motorista devem ser evitadas, e as instruções nas placas e sinalizações devem ser bem claras para que não haja risco das pessoas se envolverem em mais acidentes.”
“Estava chovendo muito”
Saindo do Centro-Oeste e indo em direção ao Nordeste, Guilherme Macedo ressalta a importância das cadeirinhas infantis e assentos elevados, após ter sofrido um sinistro de trânsito. O jovem de 25 anos explica que aos 9, estava dentro do carro com os tios em uma avenida bastante movimentada, e que na noite do acontecimento, estava chovendo muito.
“Nesse dia estava chovendo muito e no caminho que a gente estava, na avenida expressa, a viatura da polícia que andava na nossa frente parou no sinal verde e por conta da chuva e o tempo de reação do motorista, não foi suficiente para parar sem bater, e, ali na frenagem, o carro acabou derrapando e tendo a colisão com a viatura”, explica o jovem.
Apesar de não ter sofrido consequências mais graves na infância, Guilherme, por estar andando de forma inadequada no veículo, se machucou. “Eu estava no banco de trás do lado direito, no colo da minha tia, então quando houve o acidente, eu acabei indo pra frente e bati com a cabeça no banco da frente”, e segue: “Tive como se fosse uma lesão, a minha testa inchou bastante e ficou bem vermelha, mas nada a mais do que isso, fiquei passando gelo e tomando remédio.”
Prudência
O jovem acredita que o cinto de segurança e os assentos especiais para crianças de fato diminuem os impactos de um sinistro de trânsito, no entanto, não acha que seja solução para redução de incidentes. “Eu acredito que o uso da cadeirinha e cinto de segurança não vão fazer com que esse tipo de acidente reduza, mas os danos com certeza vão ser diminuídos. O problema é que o uso dessas proteções pelas crianças não torna as pessoas prudentes, tipo os terceiros, como a viatura da polícia que parou do nada, mas acredito sim que os danos vão ser diminuídos”.
As ruas das cidades testemunham diariamente tragédias que afetam a realidade brasileira: os acidentes de trânsito envolvendo crianças e adolescentes. Estes incidentes, vividos por Laura, Ana Beatriz e Guilherme, infelizmente muitas vezes fatais ou com consequências permanentes revelam um cenário alarmante e pouco discutido.
A vulnerabilidade de crianças e jovens em um ambiente dominado por veículos torna-se evidente quando há a análise das estatísticas. Segundo a ONG Criança Segura, em média, 13 crianças e adolescentes de até 14 anos são vítimas fatais de algum tipo de incidente todos os dias no Brasil.
Sinistro
O professor David Duarte, da Universidade de Brasília (UnB) e colunista da Rádio CBN, , especialista em Segurança no Trânsito, explica que o termo correto a ser usado é “Sinistro de Trânsito”, uma vez que a palavra “acidente” traz ideia de algo fortuito, não intencional.
“Eu costumo dizer que os acidentes não são acidentais, eles tem fatores que contribuem. Por exemplo, um sujeito bêbado que sai dirigindo em alta velocidade e atropela uma pessoa, isso não é acidente”, ressalta.
Traumas
De acordo com o Datasus (Departamento de Informação e Informática do Sistema Único de Saúde), em 2016, 1.292 meninas e meninos brasileiros morreram em decorrência de acidentes no trânsito. Segundo essa informação, 469 (36,3%) desses casos ocupavam veículos, seguido por 386 (29,9%) na condição de pedestre e 137 vítimas de motocicletas (10,6%).
No ano de 2018, o Brasil registrou 11.037 internações, sendo que 3.596 representam meninas e meninos que se encontravam em condição de pedestre, 2.634 representam sinistros em que a criança ou o adolescente estava em motocicleta e 2.483 crianças em bicicletas.
Entre os anos de 2022 e 2023 foram 34 internamentos de bebês com menos de um ano, 155 de crianças de 1 a 4 anos e 363 de crianças de 5 a 9 anos. Os dados de 2023 ainda são preliminares, assim como os de 2024, com 104 jovens já internados.
A partir do conhecimento destes dados, do ano 2016 ao ano de 2023, e da gravidade desses eventos viários, o especialista em segurança no trânsito, David Duarte, esclarece o porquê dessas crianças serem tão vulneráveis ao trânsito, e aponta as principais causas desses chamados “Sinistros de Trânsito”.
Risco
David Duarte explica que as crianças na primeira infância acabam se tornando invisíveis no trânsito, por serem pequenas e baixas, ou seja, difíceis de enxergar. Diante disso, há uma maior preocupação em relação a essa faixa etária.
“Se você tem uma fileira de carros estacionados, e uma criança vai atravessar a rua, ela não consegue enxergar se vem um carro na pista, então para ela ver, tem que se expor. Ela tem que sair de trás do carro, e aí ela já fica exposta ao acidente”, exemplifica.
Alysson Coimbra, diretor da Associação Brasileira de Medicina do Tráfego (ABRAMET), esclarece que o uso inadequado dos dispositivos de retenção, como a cadeirinha e o assento de elevação, é uma das causas para uma maior ocorrência de ferimentos graves e mortes nesta faixa etária. Como também, a travessia insegura de crianças, que possuem certa falha de atenção e que acabam atravessando as ruas e avenidas desapercebidas, ou seja, sem avaliar as circunstâncias presentes.
O diretor destaca também que não há um aprimoramento adequado na legislação de trânsito em relação às exigências do uso de dispositivos de retenção em ônibus e vans escolares, em veículos alugados, em táxis ou em carros por aplicativo. Dessa maneira, as crianças seguem acessando essas formas de deslocamento sem a devida segurança na infância.
A velocidade
O professor David Duarte destaca que o excesso de velocidade é o maior inimigo da segurança viária e que nenhum país, em todo o mundo, reduziu a mortalidade e o número de feridos sem reduzir a velocidade das vias, principalmente em áreas urbanas.
Existem três razões para o excesso de velocidade ser prejudicial tanto para os condutores de veículos, como motocicleta, carro ou caminhão, quanto para os próprios pedestres. A primeira delas é que quando o veículo está em alta velocidade há maior dificuldade em perceber o risco e o carro avança muito rapidamente, ou seja, as pessoas têm menos tempo para reagir.
A segunda razão é que quanto maior a velocidade, maior a distância de parada ou de frenagem. Em geral, os condutores quando veem uma situação de perigo, precisam de um tempo para assimilar qual será de fato sua reação, se é desviar, se é frear ou adotar qualquer outra manobra evasiva.
E o terceiro, quanto maior a velocidade, maior é o nível de lesões. David cita como exemplo o fato de alguém ser atropelado a 2 km/h ou a 5 km/h, haverá a pancada, mas não causará lesões graves. Já a 30 km/h, 5% das pessoas atropeladas não sobrevivem. A 50 km/h, metade das pessoas atingidas morrem.
E a 60 km/h, quase a totalidade, 98% das pessoas morrem e as que sobrevivem, ficam com lesões muito severas.
“Um atropelamento a 60 km/h, é quatro vezes mais brutal, mais violento, do que a 30 km/h”, fala David.
De acordo com Alysson Coimbra, o excesso de velocidade está relacionado a uma adoção de comportamentos prévios para minimizar os impactos da velocidade sobre a gravidade das lesões, chamado de “Acalmamento do Trânsito”. O que significa, controladores de velocidade, sinalização semafórica, sinalização viária e a presença física da autoridade de trânsito, fatores esses que podem reduzir a insegurança.
Em Belo Horizonte, por exemplo, é chamada de “Zona 30”, área que permite uma velocidade de até 30 km/h , que comprovadamente, com essa redução em áreas de grande circulação, garante uma maior chance de sobrevivência em casos de sinistros de trânsito.
“A redução da velocidade está, inclusive, nas metas globais da segunda década para a segurança do trânsito, que ela prevê uma redução através de todas essas medidas que estão lá, de até 50% do número de mortes até 2030”, diz Alysson Coimbra
Infraestrutura
Em relação à infraestrutura, o especialista em Segurança no Trânsito esclarece que a estrutura de engenharia enxerga o trânsito quase exclusivamente atrás de um volante, priorizando somente a visão do motorista, e raramente, a necessidade dos pedestres. “Tem muitos problemas que, como a engenharia não vê a segurança viária com os olhos das crianças, dos pedestres, dos ciclistas, que são os mais vulneráveis, o trânsito fica inseguro a esses usuários”, afirma David.
O professor da UnB cita como exemplo o Plano Piloto, onde há inúmeras barreiras para os pedestres, por se tratar de um local que possui o planejamento adequado predominantemente para veículos. “Alguém que vai das quadras 100 para as quadras 200, tem que atravessar 14 pistas. São dois Eixinhos embaixo e dois Eixinhos em cima, cada um deles com duas faixas de rolamento e mais seis faixas de rolamento no Eixão”
Com isso, David conclui que assim como o tráfego de veículos, os pedestres necessitam de fluidez e menos interrupções, mesmo que sua velocidade seja menor. “Então, uma caminhada que o pedestre faz, um deslocamento qualquer, ele precisa ter semáforos que garantam uma travessia dele com segurança em muitos locais que não tem”
Métodos de segurança
De acordo com Alysson Coimbra, os dispositivos de retenção, que são aqueles métodos para o transporte de crianças de até 10 anos ou com estatura de 1,45m, como a cadeirinha ou o assento de elevação, são comprovadamente fundamentais para a mínima garantia de segurança para as crianças.
Segundo o professor David, a implementação da Lei da Cadeirinha, resolução 277 do Conselho Nacional de Trânsito (CONTRAN), obteve resultados positivos quanto às taxas de sinistros de trânsito fatais e resultou na diminuição dos impactos dos acidentes para as crianças.
No entanto, ele chama atenção e adverte que muitas crianças andam de moto, e não possuem altura suficiente para se apoiarem, resultando na falta de equilíbrio. “Você precisa firmar em algum lugar e uma criança que não consegue se firmar bem, ela fica vulnerável”
Legislação
Enquanto os adultos já têm familiaridade com o trânsito, as crianças, na infância, não sabem ainda como se comportar de maneira segura nesse espaço. Por essa razão, diante dos perigos existentes no trânsito, as crianças estão mais propensas a se machucar.
Essa, inclusive, é uma das razões pelas quais se determina como infração, no art. 214, III do Código de Trânsito Brasileiro (CTB), deixar de dar preferência de passagem às crianças. A conduta é gravíssima. Portanto, ao cometê-la, o condutor, além de receber 7 pontos em sua CNH (Carteira Nacional de Habilitação), deve pagar uma multa de R$ 293,47.
Possíveis soluções
David assegura que há uma série de técnicas para fazer com que os motoristas andem, involuntariamente, em velocidades moderadas. Não só a presença de quebra-molas e a mudança de textura do pavimento, mas também a quebra da grande perspectiva que os condutores possuem nas vias de Brasília.
“Um dos problemas de Brasília é que o motorista entra na pista e tem uma longa visão de profundidade, então acredita que cabe uma velocidade de 100 km/h, mas a placa indica para andar a 60km/h”, fala David
No que diz respeito à educação, Alysson aponta que as crianças precisam ser apresentadas às regras, às formas de convivência e aos riscos do trânsito desde os primeiros períodos da educação básica.
“Essa formação é fundamental, além como um mecanismo imediato de segurança, mas para a formação de um jovem consciente e que possa ter minimamente a capacidade de garantir o seu bem mais precioso, que é a vida”
Diante disso, Alysson afirma que é necessário um avanço na lei para uma punição mais rígida pela falta do dispositivo de transporte para as crianças, previsto no artigo 64 do Código de Trânsito Brasileiro. Portanto, o Conselho Nacional de Trânsito precisa alterar a resolução para que haja uma ampliação da obrigatoriedade do uso desses dispositivos em outras modalidades de veículos que ainda não são obrigatórios.
O diretor da ABRAMET reivindica que os órgãos executivos e legislativos fiscalizem trabalhos e medidas, de modo a garantir a integridade física desses mais vulneráveis, seja por meio de travessias seguras, boa sinalização, boa condição asfáltica e iluminação.
O especialista David Duarte aponta que o Brasil gasta por ano mais de 60 bilhões de dólares (300 bilhões de reais) com os sinistros de trânsitos causados. Isso porque há custos desde o resgate, custos médicos, hospitalares, até os custos judiciais, como prejuízos com perda de produção, danos materiais e o custo do luto.
Além disso, a redução na velocidade das vias pode ser um possível caminho a se seguir, mas não é o único. Segundo balanço da prefeitura de São Paulo, o total de mortos no trânsito da capital paulista caiu de 1.357 em 2010 para 791 em 2019. Já no ano de 2020, o número de acidentes fatais caiu para 765 nas ruas da cidade, resultando em uma redução de 44%.
Como exemplo, Alysson Coimbra cita também que alguns países europeus, como Espanha, França e Inglaterra, adotaram a mudança da redução de velocidade nas vias com maior circulação. E afirma que não é possível reduzir a gravidade dos feridos e principalmente o número de mortes, sem a redução da velocidade
Dessa forma, é possível que outros estados e países, como o Brasil, façam esse espelhamento de atitudes quando confirmado que as ações de solução forem de fato eficientes para uma redução de sinistros de trânsito, rumo a taxas cada vez mais baixas.
Nos últimos anos, a discussão a respeito da terminologia mais adequada para se referir aos incidentes de trânsito vem ganhando espaço no Brasil. Enquanto alguns ainda se referem a esses acontecimentos como “acidentes de trânsito”, especialistas e organizações viárias defendem, atualmente, o uso do termo “sinistros de trânsito”. Essa modificação na terminologia não é apenas pela semântica, mas sim a respeito de todos os fatores que estão por trás da percepção e responsabilidades atribuídas a estes eventos.
Por Luiza Freire e Roberta Leite da Agência CEUB