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21 de novembro de 2024

Artigo: Onde estão os aplicativos de transporte em tempos de crise?


Por Artigo Publicado 09/08/2020 às 17h29 Atualizado 08/11/2022 às 21h45
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Para o autor, os aplicativos de transporte, durante a crise estão buscando, por todos os lados, reduzir os prejuízos.

João Lucas Miranda* 
Aplicativo de transporteFoto: Arquivo.

Não é novidade que, principalmente nos últimos anos, o fenômeno schumpteriano da destruição criadora (SCHUMPETER, 1961) vem se mostrado cada vez mais premente: redes hoteleiras em rápida substituição por alternativas de locação, tais quais o Airbnb; ensino presencial, de igual modo, transmudando-se rapidamente para a modalidade à distância; e, dentre outros inúmeros exemplos, tem-se o transporte público coletivo que, também, sofre diuturna pressão para se “aplicativizar”.

E, em relação a este último, talvez fruto do ímpeto liberal que se alvorece no país, são vários os que defendem até mesmo o fim das concessões (leia-se, fim da titularidade do Estado), tudo para permitir o livre acesso dos aplicativos ao território nacional. Alguns sustentam que a manutenção do atual regime leva a uma ingerência indevida do ente estatal na liberdade do mercado, o que invariavelmente constringiria o avanço do segmento (BARTHASAR, 2019); outros, ainda, preconizam que o excesso regulatório do setor obsta a elevação da eficiência e da qualidade do serviço (RAINER, 2018).

Daí que se vê que, sem embargo da respeitabilidade dos argumentos expendidos pelos defensores desta superação de regime, todos se assentam em mesmo referencial: a insuficiência do Poder Público — ou de seus delegatários — prestar o transporte público de forma tão eficaz quanto se prestado por entidades da iniciativa privada.

Sucede, contudo, que apesar de inegável a lógica de mercado, à qual é ínsita a competitividade, criar ambiente propício ao desenvolvimento de soluções, via de regra, mais eficazes, este argumento liberal-mercadológico encontra óbice em diversas questões, especialmente na atual conjectura, como se passa a demonstrar.

Primeiramente, a partir da leitura conjugada dos artigos 30, V e 175 da Constituição da República, chega-se à conclusão de que o constituinte originário elegeu o serviço de transporte público à titularidade do Estado e, mais que isso, atribuiu-lhe o status de essencial — “característica não conferida nem mesmo aos serviços de educação e saúde” e que, por isso, “deve conduzir a interpretação das regras infraconstitucionais que abordem a questão da mobilidade urbana” (FORTINI, 2019).

Dessa forma, goste ou não, extrai-se uma nítida intenção do legislador constituinte em proteger juridicamente este serviço, o que, por si só, esvazia a tentativa de “aplicativizar” o sistema de concessões — haja vista a inexorável necessidade do debate numa ordem constitucional-democrática se dar em conformidade com a Carta vigente.

Sob um segundo antro argumentativo, ao se recordar a extensão territorial brasileira (incríveis 8.515.767,049 km²)[1] e a opção governamental por eleger o modal viário como principal eixo de locomoção do país — como já alertava Washington Luís, “governar é abrir estradas”[2] —, há de se concluir que a prestação do serviço de transporte público de forma adequada (art. 6º, §1º da Lei nº 8.987/1995)[3] guia, invariavelmente, à existência de diversas linhas deficitárias.

Justamente por essa variável contínua, despiciendo dizer que, se se adotasse a lógica concorrencial-mercadológica, o serviço deixaria de ser prestado em tais localidades — até porque não é curial e nem lógico uma sociedade empresária do setor privado ter por objeto uma atividade que não vise o lucro.

Esse segundo contraponto, em razão da pandemia do novo coronavírus que, a toda evidência, trouxe efeitos avassaladores para a economia brasileira e mundial, ganha especiais contornos nesta crise: fruto da ótica de mercado observada pelos aplicativos de transporte, por óbvio deixam de prestar o serviço quando não há demanda que justifique os custos o que, se não fosse pela existência dos concessionários, redundaria na inviabilização do ir e vir de grande parte da população.

E, repisando-se a extensão territorial do país e a imprescindibilidade do modal viário para a locomoção, forçoso reconhecer a razão do constituinte originário ao elevar o transporte público para a titularidade do Estado e o qualificar como essencial. Afinal, seja em épocas de crise tal como a vivenciada, seja por qualquer adversidade que reduza a demanda, justamente por inobservar esta lógica de mercado o serviço continuará a ser prestado.

Torna-se, com base na evidência empírica colhida dos tempos atuais, contrafactual toda a tese aventada pelos defensores do fim deste regime de direito público, uma vez que, independentemente de eventual diferença de qualidade e eficácia, a regularidade e continuidade do transporte coletivo são vetores motrizes que nunca podem ser descurados, sob pena, como visto, de se vilipendiar o direito fundamental ao ir e vir.

Sem dúvidas, então, os aplicativos de transporte, durante a crise, estão onde devem estar: buscando, por todos os lados, reduzir os prejuízos, nem que para isso seja necessário cessar a oferta do serviço.

Da mesma forma, os concessionários de transporte público também estão onde devem estar: mantendo a prestação do serviço, sob as mesmas bases tarifárias, ainda que se esteja atravessando a maior crise do século.

Referências Bibliográficas

BARTHASAR, Rafael Martinez. Os limites constitucionais à regulamentação dos aplicativos de transporte individual privado pelos municípios brasileiros. Revista de Direito e as Novas Tecnologias. Vol. 5/2019, Out – Dez/2019, p. 01-28.

BRASIL. Lei nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995. Dispõe sobre o regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos previsto no art. 175 da Constituição Federal, e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 1995. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8987cons.htm>. Acesso em 07 abr. 2020.

FORTINI, Cristiana. Os limites dos aplicativos de transporte. Disponível em <https://www.migalhas.com.br/depeso/301863/os-limites-dos-aplicativos-de-transporte>. Acesso em 06 abr. 2020.

RAINER, Yahn. Desregulação de serviços públicos e o transporte intermunicipal de passageiros por ônibus: uma proposta viável? Revista dos Transportes Públicos – ANTP. Ano 41, 2018, 3º quad., p. 23-54. Disponível em <http://files.antp.org.br/2018/12/7/rtp150-3.pdf>. Acesso em 06 abr. 2020.

SCHUMPETER, Joseph Alois. Capitalismo, socialismo e democracia. Tradução de Ruy Jungmann. Rio de janeiro: Editora Fundo de Cultura, 1961.

[1] Disponível em <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/14318-asi-ibge-apresenta-nova-area-territorial-brasileira-8515767049-km>. Acesso em 07 abr. 2020.

[2] Disponível em <https://acervo.oglobo.globo.com/rio-de-historias/washington-luis-inaugura-primeira-rodovia-asfaltada-do-pais-rio-petropolis-8849272>. Acesso em 07 abr. 2020.

[3] Art. 6º. Toda concessão ou permissão pressupõe a prestação de serviço adequado ao pleno atendimento dos usuários, conforme estabelecido nesta Lei, nas normas pertinentes e no respectivo contrato. §1º. Serviço adequado é o que satisfaz as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas.

*João Lucas Costa de Miranda – sócio do MVPA Advogados

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