Por que está se falando tanto em tornar facultativos os cursos em CFCs? Leia a reportagem de Pauline Machado.
Segue em tramitação na Câmara dos Deputados, o projeto de lei 4474/20 que propõe o fim da obrigação de fazer autoescola para obter a Carteira Nacional de Habilitação (CNH). O PL permite que a instrução a futuros condutores possa ser feita de forma privada, sem necessidade de o candidato frequentar uma autoescola.
O objetivo, segundo o autor do projeto, o deputado Kim Kataguiri (DEM-SP), é tornar o processo de obtenção da CNH “menos burocrático e custoso”.
Magnelson Carlos de Souza, especialista em legislação, educação e segurança no trânsito e, atualmente, presidente da Federação Nacional das Autoescolas (Feneauto) e do Sindicato das Autoescolas do estado de SP (Sindautoescola.SP), ressalta que, além de o Brasil ter um dos trânsitos mais perigosos do mundo, é, também, um dos países mais burocráticos, especialmente nos casos de obtenção da primeira habilitação.
No entanto, este fato não está necessariamente atrelado às autoescolas, assegura.
“O prazo médio para concluir um processo de primeira habilitação é de três meses, mas, na autoescola, o curso teórico leva em média nove dias e mais dez dias para realizar as aulas práticas. As demais etapas, sim, estão ligadas diretamente com a burocracia: falta de vagas para exames, prazos para remarcação em caso de reprova, agendamentos para biometria, exames médicos, etc…”, explica.
O especialista, que também ocupa posição na Câmara Temática de Educação e Saúde para o Trânsito do Conselho Nacional de Trânsito (Contran), enfatiza que as legislações atuais que regulam o setor não respeitam a realidade de uma empresa do interior em comparação com uma empresa de um grande centro, por exemplo, além de serem antigas e engessadas.
“As autoescolas, que são uma delegação do serviço público, não conseguem sequer reduzir seus custos por conta de legislações desse tipo. Não existe qualquer incentivo fiscal para uma autoescola. Um levantamento de 2018 realizado no estado de São Paulo mostra que foram gastos mais de R$ 67.445.518,92 com o pagamento de taxas estaduais referente apenas aos processos de primeira habilitação. Logo, a desburocratização deve começar no Poder Público”, afirma.
Educação de trânsito
Magnelson reforça ainda que as autoescolas são as únicas entidades do País responsáveis pela formação de condutores e que também trabalham a educação de trânsito com o cidadão.
“Não temos educação de trânsito nos ensinos mais básicos, e mesmo com todo o esforço desempenhado pelas autoescolas na formação de novos condutores, o Brasil ainda é um dos países que mais causa acidentes de trânsito no mundo. Portanto, o efeito e os danos de uma propositura desse tipo são um só: elevar ainda mais os altíssimos números de fatalidades registradas nas vias públicas brasileiras. Vale mencionar também, os impactos econômicos disso. Hoje são mais de 14 mil autoescolas no país que geram mais de 120 mil empregos diretos. O efeito seria devastador”, avalia.
Aumento dos problemas
O especialista em trânsito, Josimar Amaral, também concorda que tal medida provocará um aumento dos problemas relacionados ao trânsito. Isso porque na modalidade proposta, não haverá como controlar as aulas, o registro e a frequência de acordo com o ordenamento estabelecido na resolução que prevê o agendamento das aulas práticas para a formação do candidato e a sua respectiva inclusão para fazer o exame prático.
“Não há coerência em uma medida que prioriza minimizar custos e burocracia também sendo convertida em redução de imprudência e mortes. Não é uma ação prioritária, diferentemente de uma manifestação de projeto de lei versando sobre a padronização dos procedimentos, porque o que nós percebemos em face da dimensão territorial do país, que em diversas regiões, nós temos atitudes distintas dos órgãos responsáveis pela formação. Eu não vejo a questão de burocracia ligada ao comportamento que gera imprudência e mortes no trânsito”, analisa o especialista.
Ensino à distância
Conforme a proposta, para os exames teóricos, que incluem avaliação dos conhecimentos sobre legislação de trânsito e primeiros socorros, os órgãos de trânsito deverão oferecer material gratuito em seu site eletrônico, permitindo a autoinstrução.
Neste sentido Amaral entende que a proposta vai, novamente, de encontro ao que favorece à boa formação de novos condutores. De acordo com ele, as aulas no formato EAD não são pertinentes para a utilização por em diversos pontos do País, ainda não dispor de uma conexão de internet segura e, sobretudo, por avaliar que o contato – instrutor teórico e aluno ainda seja imprescindível para o processo de formação de novos condutores.
“Por mais que a tecnologia incline-se a levar os cursos cada vez mais para as plataformas EAD, no ensino remoto, nós percebemos que o presencial ainda é imprescindível e não podemos nos debruçar a esse tipo de conduta e aceitá-la de forma passiva, pois, os procedimentos adotados em aula teórica são extremamente relevantes no sentido de tirar as dúvidas e de adequar condutas. Além disso, temos muitas pessoas que ainda têm resistências quanto as informações transmitidas via online”, considera.
Para Magnelson o EAD não é, necessariamente, um aprimoramento do método de ensino-aprendizagem do futuro condutor, assim como não é a solução para os altos índices de acidentalidade e mortalidade no trânsito. De acordo com ele, essa modalidade de ensino deve ser encarada como um complemento à formação de condutores, indo ao encontro das ideias de desburocratização e modernização do setor. “Diante disso, defendemos o ensino semipresencial em sala de aula para a obtenção da primeira habilitação. É necessário um amplo debate com todos os envolvidos no sistema nacional de trânsito para avaliar os efeitos de uma possível implantação do EAD na formação de condutores”, reforça.
Mudanças nos exames práticos
Já para o exame prático de direção, realizado na via pública, a instrução poderá ser feita por instrutor independente, credenciado junto aos órgãos de trânsito. Entretanto, na avaliação do presidente da Feneauto, não será possível prever a regulação em cada estado de uma propositura como essa, que carece de muito embasamento técnico e demonstra, segundo ele, profunda falta de conhecimento da realidade do setor e da formação de condutores em si. “É importante destacar que a realização do exame teórico e do exame de prática de direção veicular podem representar um grande diferencial no processo de habilitação no Brasil. Nesse sentido, lamentavelmente é inegável afirmar que temos muitos problemas em vários estados brasileiros na aplicação desses exames. Logo, seria importante que o referido projeto começasse o processo de transformação de comportamento pelo setor público. Até porque o exemplo deve vir do agente público”, assegura.
Outro ponto de atenção é o fato de, embora o projeto prever que o veículo utilizado na instrução deverá conter identificação própria da condição de aprendizagem, na forma estabelecida pelo Conselho Nacional de Trânsito (Contran), de quem será a responsabilidade do veículo e dos demais trâmites nos casos relacionados a acidentes de trânsito?
Sobre este aspecto, Josimar Amaral esclarece que os Centros de Formação de Condutores são responsáveis pelos veículos e têm no seu quadro de profissionais, instrutores que são treinados e avaliados periodicamente pelas instituições.
“Logo, em caso de acidentes que possam causar danos materiais, o responsável, pela cobertura desses danos é o proprietário da autoescola. No caso de um envolvimento, da forma como está previsto no projeto, o responsável será o titular do veículo, então, quem deveria, nestes casos, estabelecer essas responsabilidades? Isso teria que vir em uma resolução, em um cumprimento de normas estabelecidas pelo Contran. Ou seja, é mais uma situação, um ponto questionável neste projeto de lei”, garante.
Se aprovado, poderá ser o fim das autoescolas?
Na Câmara, também tramita proposta que torna a formação em autoescola optativa para os candidatos a motorista (PL 3781/19).
Sobre este aspecto, Amaral ressalta o fato que a proposta de tal mudança está condicionada a alguns cidadãos brasileiros que visitam outros países ou pesquisam sobre o trânsito e respectivos processos para tirar a primeira carteira de habilitação em outros países. Mas, que em sua grande maioria, tais procedimentos não se aplicam na cultura brasileira. “Nós não temos a cultura da França, muito menos a cultura da Suíça ou da Suécia, ou de outros países que têm o seu trânsito compatível com o comportamento da cultura social. Então, a formação da autoescola, não pode ser optativa no Brasil. Nós precisamos é de ajustes nos procedimentos relativos: formação de condutores e profissionais que atuam neste processo”, afirma.
No entendimento do presidente da Feneauto e do Sindautoescola.SP, Magnelson Carlos de Souza, este é mais um projeto de lei que ameaça o setor.
“Este não é o único. Tivemos a oportunidade de nos reunir com o autor do PL 3781/19 para apresentar a nossa total intenção em colaborar para reduzir cursos e desburocratizar o acesso à habilitação para o cidadão de qualquer localidade do Brasil. As autoescolas querem estar no futuro da educação de trânsito, mas, na maioria das vezes são rotuladas como vilãs. E na verdade, sabemos que assim como qualquer setor econômico, temos os bons e maus empresários. Ao propor ‘acabar com as autoescolas’ ou chamar o setor inteiro de ‘mafiosos’, você generaliza uma classe de empresários e profissionais que estão verdadeiramente empenhados em formar condutores. Além disso, realmente estão preocupados em aprimorar o trânsito brasileiro”, acredita.
Como representantes do setor, Magnelson enfatiza que em hipótese alguma existe a possibilidade de extinção das autoescolas.
“Muitos modelos de negócios sofreram com a evolução natural da sociedade e estamos preocupados e nos preparando para fazer parte desse futuro digital. Neste aspecto, acreditamos que a educação sempre terá espaço no futuro. A Feneauto está desenvolvendo um Planejamento Estratégico que vai contemplar toda essa transformação digital que está ocorrendo no mundo, ligeiramente acelerada pela pandemia de coronavírus. Queremos inserir as autoescolas, devidamente reconhecidas como Entidades de Ensino, nessa transformação. Talvez o modelo atual de negócio de uma autoescola não tenha lugar no futuro que o mundo está nos reservando. Um CFC, porém, amparado por uma segurança jurídica, com qualidade, tecnologia e eficiência em sua prestação de serviço, seguramente terá espaço nesse futuro. E, ainda, com a possibilidade de se tornar o grande referencial na educação e formação de condutores no Brasil”, almeja.