J. Pedro Corrêa mostra seu inconformismo com a apatia de governos, lideranças e da sociedade com relação ao número de mortos e feridos no trânsito brasileiro. Além disso, propõe uma tomada de posição.
*J. Pedro Corrêa
“Um mundo diferente não pode ser construído por pessoas indiferentes”. A frase do líder religioso americano Peter Marshall é, ao mesmo tempo, um alerta e um conselho a vários povos ao redor do mundo que não perceberam para onde estão indo.
Usei esta advertência na abertura do capítulo 7 do meu livro “Cultura de Segurança no trânsito – Casos Brasileiros” em que comento o papel da sociedade em relação à segurança do trânsito. Uso agora, novamente, as palavras do pastor americano para chamar a atenção da sociedade brasileira para a apatia com que acompanha a escalada de mortes e feridos no trânsito nacional ao longo das últimas décadas.
Milito nesta área há 30 anos, faço parte de vários grupos de discussão sobre trânsito na Internet, ultimamente tenho participado de algumas dezenas de debates e não me ocorre que tenha visto tão poucas discussões sobre o número de vítimas de sinistros de trânsito.
Vamos reconhecer que nunca se falou tanto de trânsito como ultimamente (principalmente na Internet) mas é estranho que nos dedicamos tão pouco a debater e aprofundar o entendimento porque estamos nesta posição tão desvantajosa no ranking da sinistralidade.
Os meios de comunicação falam de trânsito a toda hora; a mídia social aborda o tema diariamente; o trânsito é assunto de seminários e debates com grande frequência. Curiosa e estranhamente, vejo poucos debates para levar a sociedade a compreender os números e discutir sobre como sair desta situação desconfortável.
É possível que alguns leitores respondam à esta minha provocação alegando que o Brasil não está numa posição tão má assim no ranking mundial de vítimas de trânsito: o país registra cerca de 20 mortos por grupo de 100.000 habitantes enquanto algumas nações africanas passam por bem mais de 30. É bom lembrar, porém, que nos países escandinavos este número está perto de 3 mortos.
Ademais, no Brasil, temos a pretensão de querer fazer parte do pelotão de frente das nações líderes do globo e aí, definitivamente, nossos números não combinam.
O pouco que temos de campanhas de comunicação não informam números; quando falam de redução de mortes, dentro dos objetivos das Década Mundiais de Trânsito, mencionam “50% a menos” mas não dizem qual é o número atual de vítimas nem qual o número pretendido para 2030. O Pnatrans, do Denatran, criado em 2018 para reduzir o número de vítimas, ainda não está operando. Isto significa que ainda temos de esperar um bocado até resultados começarem a aparecer.
A desatenção a esta realidade é, apenas um exemplo do ainda baixo índice de cultura de segurança no trânsito da sociedade brasileira. Da mesma forma, inclusive pessoas que dedicam boa parte do seu cotidiano a falar de trânsito parece que não se preocupam com o pouco caso que governo e comunidade dão ao assunto. A falha é, em boa parte, nossa, daqueles que se preocupam com o trânsito e não conseguem colocá-la no centro das discussões.
É preciso salientar que VIDAS PERDIDAS NO TRÂNSITO IMPORTAM e é nossa obrigação combater esta indiferença com alertas e discussões adequadas.
Se provocarmos uma discussão nacional como esta, todos acabaremos ganhando: nós, especialistas e consultores que atuamos no trânsito, melhorando nossos conhecimentos; a sociedade, que se torna mais atenta ao assunto e todo mundo junto – sociedade, especialistas, mídia e interessados em geral. E que, com este movimento, conseguiremos acordar e pressionar o governo a fazer melhor a sua parte.
Não há dúvida de que, se tivéssemos governantes mais cuidadosos, a segurança no trânsito teria outro tipo de tratamento. Nosso comportamento nas ruas e estradas seria bem superior e certamente o número de vítimas seria significativamente menor. Por exemplo, um dos males no setor de trânsito é a paupérrima divulgação das estatísticas da área.
Ora, se desconhecemos os números do trânsito, por que deveríamos nos preocupar?
Esta, aliás, é uma pergunta cruel: a quem interessa a não divulgação dos números de mortos, feridos e sequelados do trânsito? É possível que alguém poderia estar ganhando com isto? Por que não fazemos pesquisas de opinião pública para conhecer o que pensa a sociedade sobre trânsito? Por que não discutimos estes assuntos? Sinceramente não consigo vislumbrar respostas.
Poderia provocar uma outra boa discussão formulando estas perguntas ao contrário: o que nós – governo, lideranças, especialistas e sociedade ganharíamos conhecendo estas respostas? Certamente saberíamos muito mais dos nossos deveres de casa para com o trânsito: quanto precisaremos melhorar nossa educação para o trânsito, nosso comportamento, nossa engenharia, nossa fiscalização, nosso planejamento, enfim, como inverter esta infeliz tendência e enxergar o futuro com muito mais seriedade.
Torço para que muitos dos amigos, colegas que se dedicam ao trânsito, sejam organizadores de lives, debates, eventos ou simplesmente deles participantes e que tenham lido este artigo até aqui, que adotem posição de combate à esta indiferença e criem estratégias de como ajudar a colocar nosso trânsito na mão certa.
Posso garantir que não é algo impossível. Pelo contrário, é uma tarefa (ou missão?) bastante motivadora, nobre, notadamente se compartilhada por um grupo de pessoas dedicadas e atuando nas várias regiões do país.
É preciso dizer que várias cidades brasileiras estão se esforçando bastante para reduzir os sinistros de trânsito e já apresentam resultados expressivos. Algumas inclusive atingiram as metas da 1ª Década Mundial de Trânsito, de 2011 a 2020 e já estão em ação para atingir mais 50% de redução de vítimas de 2021 a 2030, na 2ª década. Em outro grupo de cidades, percebe-se o interesse local mas falta estrutura organizacional. Nestes casos, a ajuda de especialistas, interessados, ONGs é da maior importância. Afinal, vidas no trânsito importam e esta mensagem deve sensibilizar o conjunto da sociedade.
Se os governantes perceberem o interesse e o incentivo (ou a pressão) da sociedade, não haverá como não se envolverem com vigor nesta ação. Não poderão dar a desculpa de que não dispõem de orçamento para investir num programa local de segurança no trânsito. Sabemos que basta um pouco de criatividade para provar o contrário.
O Programa Vida no Trânsito, que existe desde 2011 e já se mostrou eficaz em inúmeras capitais e várias outras cidades do interior, está ai para comprovar: com organização, entrosamento entre seus membros e deixando vaidades institucionais de fora é possível, sim, chegar a resultados promissores. Nesse sentido, o trânsito brasileiro pode ser muito melhor do que o que temos hoje. O número de vítimas pode e deve baixar para, um dia, chegar a zero. Basicamente o desafio está em saber qual é o número de vítimas na nossa cidade, saber que temos de reduzi-lo pela metade até 2030. Enfim, exigir das autoridades um plano de ação.
Um mundo diferente não pode ser construído por pessoas indiferentes. Este é um alerta importante e oportuno a cada um de nós para que tenhamos a ousadia de denunciar esta indiferença. Além disso, propor um reposicionamento da sociedade, exigindo ações claras de correção.
Não é possível tolerar mais tantas perdas humanas e materiais que se repetem a tantos e tantos anos. Como cidadãos brasileiros temos o dever de nos insurgir contra esta realidade. Ela não é obra do acaso mas sim do descaso de governantes e da indiferença das lideranças e da sociedade. Vidas no trânsito importam!
*J. Pedro Corrêa é Consultor em Programas de Segurança no Trânsito