Artigo: Cultura à brasileira


Por Artigo

J. Pedro Correa aborda avanços da cultura de segurança no trânsito brasileiro nos últimos tempos mesmo que parte da sociedade não os perceba. Leia e comente!

J. Pedro Correa*

Durante palestra para executivos de uma empresa no começo da semana, um diretor me perguntou que nota, de zero a dez, eu daria para a cultura de segurança no trânsito no Brasil na atualidade. A pergunta continha um certo ar de desdém diante da situação desfavorável do país pelos índices de fatalidades registrados anualmente. Percebi que era um bom momento para esclarecer alguns pontos sobre nossa realidade que, aparentemente, boa parte da sociedade não se dá conta.

Nosso trânsito, na verdade, não é tão bom quanto gostaríamos, mas nem tão mal quanto repetimos tantas vezes!

Lembrei que todos nós – governo, setor privado e sociedade – temos nossos deveres de casa em relação ao trânsito e muitas vezes não os fazemos. Contudo, não devemos ignorar nossas conquistas feitas no setor ao longo das últimas décadas!

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Foto: Arquivo Tecnodata.

Pedi a ele e a todos os demais que participavam do encontro, que me respondessem quem, daquele grupo, usava cinto de segurança há 25 anos, só para dar um exemplo de mudança de comportamento que observamos no Brasil. É uma forma de mostrar como evoluímos, sim, na cultura de segurança no trânsito nas últimas décadas e talvez nem notamos. Falei dos avanços da tecnologia embarcada dos nossos veículos que hoje nos oferecem uma segurança infinitamente superior à que tínhamos na metade do século passado.

Continuei: o fato de o brasileiro, hoje em dia, comprar um carro com acessórios de segurança impensáveis há alguns anos, é uma evidência de que ele tem, hoje, muito mais cultura de segurança do que há algumas décadas. Era comum ver pessoas que adiavam a troca do pneu careca do carro para cobrir custos das festas de fim-de-ano. Se quisermos um exemplo bem simples, que podemos observar no trânsito urbano, é só comparar quantas vezes você testemunhava motoristas que furavam o sinal vermelho há duas décadas e agora.

Até onde sei, não existe maneira de dar uma nota ao nível de segurança no trânsito mas há algumas pistas que podemos percorrer para não ficarmos no “não sei” ou “não há”.

A primeira delas, com certeza, são os indicadores de acidentalidade que temos registrado no país ao longo dos anos. A curva aponta para baixo.

Quando comecei a lidar com segurança no trânsito, em 1987, me surpreendi que o País tinha registrado no ano anterior um total de 27.300 mortes nas ruas e estradas, algo estarrecedor para mim que acabava de viver 4 anos na tranquila Suíça. Pois bem, em 2019, 34 anos depois, o Brasil tomava conhecimento de que haviam morrido no trânsito pouco mais de 30 mil pessoas. Considerando que neste período a população cresceu mais de 50% e a frota de veículos triplicou. Podia ter sido melhor, mas não foi um mau resultado.

Vários fatores contribuíram para esta conquista.

O motor desta aventura foi a entrada em vigor do Código de Trânsito Brasileiro, em janeiro de 1998. Seu maior trunfo foi a obrigatoriedade do uso do cinto de segurança que conseguiu “pegar”, nacionalmente, seja pelo fato de ser, afinal, compulsório ou, ainda mais, pelo elevado valor da multa para quem fosse flagrado sem ele. De lá para cá, o índice de uso do cinto já chegou a “muito alto”, acima dos 90%, mas decresceu, de acordo com a queda na fiscalização. De qualquer forma, ainda que tenha espaço para melhorar de novo, já atingimos um nível bom, internacionalmente falando.

A Lei Seca, de 2008, que preconizava tolerância zero para quem bebesse e depois dirigisse, foi outro fator importante para melhorar a segurança no trânsito forçando a mudança de comportamento.

Na minha visão, o ponto central desta “metamorfose à brasileira” foi, e continua sendo, a comunicação. Nunca se falou tanto de trânsito na história deste país como nestas últimas décadas. Mais o tempo passa e mais surgem novos canais de comunicação que se debruçam sobre o tema. Televisões, rádios, jornais, revistas, sites, blogs na Internet passaram a ver no trânsito – e na acidentalidade – uma pauta ótima a ser repassada e discutida com a sociedade.

Com a inclusão do assunto trânsito na agenda cotidiana da sociedade brasileira, fomos paulatinamente ganhando mais informação e, assim, melhorando nossa cultura de segurança.

Mesmo quando criticamos fortemente o trânsito pela ausência de medidas necessárias ou tardias nas nossas ruas e estradas estamos incrementando a cultura de segurança pelo que podemos aprender com essas discussões.

É claro que a situação nacional poderia ser bem melhor caso o trânsito fosse uma prioridade entre nós. Desde o sempre, segurança no trânsito nunca foi uma prioridade para qualquer governo brasileiro, muito menos para empresas assim como para a sociedade. A falta do ensino de educação para o trânsito nas escolas é apontada como a essência do problema, mas este item esconde um problema maior: nosso nível de escolaridade básica é baixo, o que explica o desinteresse. A falta de prioridade que observamos no trânsito não é menor do que a observada na área do trabalho, ou em casa, mesmo nas escolas.

Países avançados há mais de 50 anos trabalham duro para melhorar fluxo e segurança no trânsito e os têm conseguido, à custo de muitos esforços e investimentos.

Por aqui precisaremos apostar fortemente não apenas na educação básica, mas em todos os níveis da pirâmide educacional assim como envolver entidades, empresas, sindicatos, núcleos religiosos para ressaltar a vida como um valor. Algo que por incrível que pareça, não é percebido corretamente pela sociedade.

Agora, em tempos de pandemia, as coisas ficaram ainda mais difíceis para o trânsito pois o Covid 19 tomou conta da agenda brasileira. E deve continuar dominando durante este ano de 2021 e se arrastando pelos próximos também.

De qualquer forma, quanto mais repetirmos este discurso mais estaremos incrementando a cultura de segurança no trânsito e mais próximos estaremos do dia em que iremos nos orgulhar por termos conseguido tirar o país do atoleiro em que se meteu há muito tempo. É um dever de cada um de nós para o benefício de todos!

*J. Pedro Correa é Consultor em Programas de Trânsito

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