Artigo – A revolução do trânsito
J. Pedro Corrêa aborda os caminhos incertos do futuro imediato do trânsito brasileiro e a necessidade de mudança radical.
*J. Pedro Corrêa
O Brasil não é para principiantes, não é para amadores! Frases deste tipo já ecoaram por este país há muito tempo – e continuam sendo repetidas. Fazem sentido.
Olhando pelo viés do trânsito, posso me considerar uma testemunha viva desta história nos últimos 30 anos. Por um lado constato um grande avanço no processo de evolução do trânsito, o que poderia dar a impressão de que falta pouco para chegar ao objetivo de um sistema moderno, decente, humano, com bons indicadores e futuro garantido. Ledo engano! Parece que quanto mais longe está a margem do rio de onde partimos, mais distante também está a outra margem onde pretendemos chegar.
Se fosse fazer uma comparação de cenários entre 1987, quando comecei a me envolver com o trânsito e 2021, quando começo a me preparar para encerrar minhas atividades, diria que o país progrediu bastante mas não o suficiente. Neste período o mundo passou por enormes transformações e muitas delas trouxeram benefícios consideráveis ao Brasil e à sua gente. Ao passo que se olharmos apenas o setor de trânsito e transporte e constatarmos a evolução do setor automobilístico com todos os seus avanços tecnológicos, podemos dimensionar o grande avanço nacional. Se vamos observar o salto dado no campo da educação, com o surgimento de novas universidades e progresso de outras, dá para dizer que somos (quase) um outro país.
Ao cotejar estes dois cenários e mensurar nosso progresso, dá para dizer que nosso trânsito evoluiu pouco, num ritmo muito aquém do esperado e muito menor do que o necessário.
Trânsito e transporte deveriam ser vistos como impulsionadores do desenvolvimento nacional. De maneira a serem considerados como verdadeiros motores do nosso crescimento, o que, obviamente não é o caso. Se focarmos apenas nos indicadores de segurança, aí então, o quadro fica mais complicado e difícil de explicar.
Temos informação, temos conhecimento mas não os transformamos em melhor comportamento tanto como condutores de veículos como pedestres. Nos últimos anos, melhoramos nossos índices de mortos e feridos no trânsito. Os números gerais que apresentamos, porém, são de fazer vergonha a países que possuem um nível de desenvolvimento muito inferior ao nosso. Pior do que estar nesta posição, é não conseguir enxergar com clareza quando poderemos sair dela. Sinceramente, depois de mais de trinta anos contribuindo para a melhoria do trânsito, esperava deixar algo melhor para meus netos mas pelo que estou vendo caberá a eles continuar estes esforços e colocar o país na mão certa.
Creio que não vale a pena ficar perguntando quem é o culpado. Seria melhor indagar com seriedade o que pode a sociedade fazer por um trânsito melhor.
Para onde vai o nosso trânsito parece ser uma pergunta instigante para cada um de nós mas principalmente para nossos governantes e lideranças. Nesse sentido, se não colocarmos foco nesta questão vital, não há dúvidas de que vamos lamentar muitas mortes e sequelas de grande contingente de brasileiros durante muito mais tempo. Quanto mais nos esforçarmos, menos tempo será necessário e mais vidas salvas poderemos festejar.
Só para citar um exemplo, acaba de sair o relatório anual de 2020 da ETSC, Conselho Europeu de Segurança no Transporte, da União Europeia que reúne 27 países. Ele informa, por exemplo, que 56.305 vidas foram poupadas desde 2010 se a Europa tivesse mantido o mesmo índice de perdas do período anterior. Com quase 450 milhões de habitantes, os países da comunidade europeia registraram 18.844 mortes no trânsito em 2020. Consideravelmente menor do que os nossos mais de 30.000 perdas, com uma população de 210 milhões.
Como explicar estas diferenças?
Legislação firme, fiscalização que não perdoa, apoiada por uma eficiente engenharia de tráfego e, óbvio por um incansável esforço de educação. Neste quesito é bom dizer que em grande número de países europeus, o processo de mudanças no trânsito foi iniciado há sessenta anos. Em outras palavras, isso certamente justifica o melhor comportamento dos europeus.
O que faz uma enorme diferença é a forma de como as lideranças europeias se comportam ao longo destes tempos. Ademais, é claro que todo este progresso não aconteceu de uma hora para a outra mas sem dúvida a continuidade da maior atenção ao trânsito foi decisiva para chegar aos resultados que hoje vemos por lá. Apesar de ainda enfrentarem sérios problemas e discrepâncias consideráveis de atuação entre vários membros, a União Europeia conseguiu montar uma estrutura impressionante de fontes de conhecimento que atuam em conjunto. A criação de numerosos institutos de pesquisas, de estudos sobre áreas específicas, além de um robusto suporte de financiamento para conter as perdas no trânsito e alavancar seu desenvolvimento, foram de fundamental importância.
No Brasil somos muito pobres ainda na área de geração de conhecimentos sobre trânsito e isto faz muita falta.
Nos Estados Unidos impressiona ver o número de instituições voltadas ao trânsito. Lá, a integração de esforços, na área governamental, é bem mais complicada. Cada estado tem autonomia na gestão do trânsito mas em compensação o comando nacional é muito robusto. Além disso, administra orçamento de fazer inveja a quem quer que seja. Por exemplo, só o Plano de Infraestrutura, anunciado em março último pelo Presidente Biden, prevê 2 trilhões de dólares em investimentos englobando áreas de trânsito e transporte, incluindo a segurança.
O Brasil precisa fazer urgentemente um amplo estudo sobre o futuro imediato e de médio prazo dos setores de transporte e mobilidade incluindo segurança no trânsito para as próximas décadas. Precisa mais: informar a sociedade sobre onde estamos, para onde estamos indo e como queremos chegar lá. Sem estas informações será cada vez mais difícil conseguir a adesão dos brasileiros para melhorar o trânsito. Nesse sentido, para obter resultados substanciais temos de criar melhor estrutura de geradores de conhecimentos como centros de estudos, institutos de pesquisas e estatísticas, ONGs e aparelhar melhor as prefeituras. Por exemplo, as universidades precisam criar mais cursos de graduação e pós graduação para aumentar expressivamente o conhecimento nestas áreas. Isto tudo sem deixar de reconhecer o grande esforço na educação primária e mesmo a pré-primária. Enfim, precisamos uma revolução completa no trânsito brasileiro.
Ou pensamos grandes ou seremos eternamente pequenos.
*J. Pedro Corrêa é Consultor em Programas de Segurança no Trânsito