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26 de dezembro de 2024

O rito de passagem (de ônibus!)


Por Rodrigo Vargas de Souza Publicado 31/08/2017 às 03h00 Atualizado 02/11/2022 às 20h17
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Ford FiestaFoto: Freeimages.com

Queiroz (2006)[1] explora muito bem em seu ensaio as simbologias que envolvem o automóvel no universo publicitário e nas relações sociais. Uma delas se refere à ideia do carro como representação de uma espécie de rito de passagem para a maioridade. É bem comum, em famílias mais abastadas, os pais presentearem seus filhos com carros assim que esses ingressam na faculdade ou atingem a maioridade. Segundo ele, a própria carteira de motorista habilita o jovem a uma nova condição de ampliada liberdade.

No entanto, como na grande parcela da população brasileira, o automóvel não assumiu tais significados na minha família. Só consegui tirar minha carteira de habilitação aos 20 anos, após muito trabalhar para juntar a quantia que, na época, representava diversos meses de trabalho. Ainda assim o carro teria que esperar mais alguns anos. Meu primeiro veículo foi uma motocicleta Honda CG Tittan, 150 cilindradas, ou como alguns adeptos aficionados do mundo motociclístico, devido à sua baixa potência, costumam afirmar: “Tittan não é moto!”. Mas, preconceitos à parte, aquela motocicleta durante quatro longos anos me serviu bastante bem.

No entanto, com o casamento, a família cresceu. E, principalmente, devido a algumas traumáticas experiências em acidentes de trânsito vivenciadas com a minha entrada na fiscalização de trânsito, a compra de um automóvel tornou-se não só uma opção, mas uma necessidade. A motocicleta, embora rápida e econômica, em função da violência atual no trânsito, submente o motociclista a um grande risco em tempo integral. Um risco que, durante a vida de solteiro, não me preocupava. Entretanto, agora, com as responsabilidades de mantenedor de um lar, não podia me submeter.

Foi então que, depois de muito tempo procurar, encontrei um modelo perfeito. Perfeito diante das minhas condições financeiras, obviamente. Um carro 0 km na época seria inviável. Não tinha grandes reservas para uma entrada que me possibilitasse uma prestação condizente com a minha realidade. Tratava-se de um Ford Fiesta, do ano de 2000, que, em meados de 2010, me custou aproximadamente 13 mil reais.

Contudo, a inexperiência e falta de conhecimento em mecânica me trouxeram algumas dores de cabeça desde então. Aborrecimentos habituais de se comprar um carro do qual o passado se desconhece. Refiro-me a algo que os bem-aventurados proprietários de carros novos desconhecem, ou somente ouvem falar: manutenção. Não que seja anormal para um carro com mais de dez anos de uso, mas alguns contratempos, com pouco mais de experiência, poderiam ser evitados. Não pretendo me prolongar muito nesse quesito, então, para resumir a conversa, somando o valor do veículo, acrescido dos juros referentes ao financiamento e dos valores gastos em manutenção eu teria, tranquilamente, uma quantia mais que suficiente para comprar qualquer 0 km de modelo popular naquela época.

Com isso, criou-se, entre meu carro e eu, uma relação ambígua de amor e ódio. Relação regada a momentos de calmaria, onde tudo parecia funcionar perfeitamente, e outros de tormenta, onde os anos de uso pareciam corroer cada peça implacavelmente. Por isso constantemente me fazia alguns questionamentos, como “por que eu ainda continuo com esse carro?”, “por que ainda não troquei por um carro novo?” e até “será que eu preciso mesmo de um carro?”. O fato é que, pra mim, foi muito custoso adquirir aquele veículo. Talvez por isso parecesse uma tarefa tão difícil me desfazer dele. Criei uma espécie de apego por ele. Parece que todas as vezes que punha um anúncio de venda criava, ao mesmo tempo, um empecilho para não vendê-lo.

Essa relação era tão forte que, em determinadas ocasiões, até minha própria esposa parecia sentir-se enciumada. Por diversas vezes tive que ouvir suas reclamações acerca dos meus gastos com o veículo. Em certa feita, por não acreditar que meus gastos com o carro fossem tão grandes, ela até mesmo chegou a cogitar e mencionar que eu teria outra família. Recorri então mais uma vez ao bom humor, dizendo que tinha sim outra família que dependia do meu salário. Claro que, antes mesmo que ela pudesse me alcançar ou mesmo lançar o primeiro objeto que tivesse ao seu alcance (de preferência pontiagudo), esclareci: “sustento também a família do mecânico!”.

Enfim, olhando para trás, vejo que de certa forma a aquisição do meu primeiro automóvel representou também um rito de passagem. Não para a maioridade, ou para o lugar de pai de família, ou de passagem a qualquer outra condição que já não ocupasse anteriormente. Refiro-me a condição de passageiro, já que, em função das constantes manutenções, meu carro passava mais tempo com a minha outra família que comigo! Mas tenho a consciência tranquila por sentir que, apesar de tudo, fui um bom dono. Quando no trabalho ou na vizinhança alguém sentia falta e perguntava pelo meu carro, não hesitava em responder: “está no spa, novamente…”

[1]QUEIROZ, Renato da Silva. Os automóveis e seus donos. Imaginário – USP, 2006, vol. 12, no 13, 113-122.

 

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