A pressa é amiga da infração
Leia a reflexão do colunista Rodrigo Vargas sobre velocidade tem tirado vidas diariamente não apenas de trás dos volantes, mas diante deles também.
Caminhar com bom tempo, numa terra bonita, sem pressa, e ter por fim da caminhada um objetivo agradável: eis, de todas as maneiras de viver, aquela que mais me agrada.
A frase atribuída ao filósofo suíço Jean Jacques Rousseau, que viveu durante o século XVIII, certamente não se aplica aos dias de hoje por dois motivos simples e que estão intimamente ligados: status e velocidade.
Status significa a posição social de um indivíduo, o lugar que ele ocupa na sociedade e é um termo oriundo do latim. Status significa posição de pé, estado, situação ou condição, e é relacionado a um lugar ocupado por uma pessoa na sociedade.
Como abordei em “TUNING”: CRIADO A NOSSA IMAGEM E SEMELHANÇA, o humorista e cartunista Maringoni utiliza a figura de um inusitado personagem existente no trânsito: o pedestre.
Ele afirma que, por mais incrível que pareça, mesmo tratando-se de uma prática antiquada e obsoleta, ainda existem pessoas que andam a pé! Pés que, segundo o autor, “[…] são aquelas extremidades usadas para se acionar outra parte do corpo humano: os pedais do automóvel”.
De forma irônica, ele defende a ideia do automóvel como extensão do próprio corpo, definindo-o como “[…] órgão indispensável do corpo humano, o automóvel rege nossas vidas, mesmo que você não tenha um. Como se sabe, o homem começou andando de quatro, ficou de pé como homo erectus e agora ficou de quatro, novamente. De quatro rodas”.
Entretanto, Maringoni adverte quanto à dificuldade em aderir à prática do ato de caminhar, já que, segundo o mesmo, essa é uma prática que necessita que a pessoa fique na posição vertical, posição que não é a natural do corpo humano, ou seja, sentada num banco de automóvel a maior parte do tempo. Por isso, ele elenca uma detalhada série de instruções ensinando, passo-a-passo, a prática de caminhar. Mas, por fim, ele tranquiliza o aspirante a pedestre, incentivando-o a não desistir e afirmando: “Logo você perceberá que essa prática é tão natural quanto respirar ou dirigir”.
Já a velocidade há muito deixou de relacionar-se simplesmente, como aprendemos na física, à variação da posição de um objeto no espaço em relação ao tempo.
Atualmente, ela é expressa pelo comportamento da sociedade, que pode ser observada até mesmo numa simples fila de caixa.
Com a organização do capitalismo moderno houve a aceleração dos ritmos econômicos. Os meios comunicacionais, a cibernética, as relações virtuais e mesmo o avanço tecnológico dos motores, cada vez mais potentes e velozes, representa economia de tempo e distância, o que acabou por legitimar a máxima: tempo é dinheiro.
O tempo, tomando o lugar da vida, tornou-se um valor.
No entanto, assim como assinala o filósofo alemão Robert Kurz, a aparente economia de tempo que resulta da velocidade trouxe uma inestimável, porém contraditória perda em uma das mais importantes qualidades de nossa vida: a qualidade do próprio tempo de vida.
A velocidade, um tema ao qual já dediquei diversos outros textos, transformada em pressa, tem tirado vidas diariamente não apenas de trás dos volantes, mas diante deles também. Certa feita, ao ministrar uma palestra em uma empresa, nas quais o tema invariavelmente acaba migrando para a famosa “indústria da multa”, pedi ao público para que levantassem a mão aqueles que, sinceramente, já haviam cometido alguma infração de trânsito, porém, que essa não houvesse gerado uma autuação. Aparentemente confusos, tanto com a pergunta quanto com o fato de até o palestrante ter levantado a mão, eles se entreolhavam. Até que eu repeti o questionamento para que ficasse bem claro o meu intuito.
Eis que percebo uma senhora no público, bem à frente, com os braços cruzados e com um risinho irônico no canto da boca. Volto a repetir a pergunta, dessa vez dirigindo-me especificamente a ela, ao que ela responde: “Não. Não tenho carteira!“. Então quer dizer que a senhora nunca atravessou fora da faixa de segurança? Durante o sinal vermelho para pedestres? Em meio aos veículos? – questionei-a. O risinho irônico foi aos poucos se transformando num sorriso amarelo e, sem graça, ela foi aos poucos levantando a mão e juntando-se aos demais naquele auditório.
O fato de não ser habilitado a conduzir um veículo automotor não exime o pedestre das suas responsabilidades no trânsito. Independente de estar apto a ser autuado por eventuais infrações ou não.
Ao perguntar a um cadeirante que perdera o movimento das pernas após atravessar por baixo de uma passarela; ou (caso tivesse a possibilidade de) perguntar a um pedestre distraído que perdera a vida ao atravessar enquanto o sinal estava fechado para ele, se ambos trocariam suas atuais condições pelas anteriores em troca do pagamento de uma multa e a adição de alguns pontos nos seus prontuários, duvido muito que em qualquer um dos casos a resposta seria negativa.
Parafraseando o genial Nobel da literatura, José Saramago, “Não tenhamos pressa, mas não percamos tempo“.