A necessária urgência de Embargos da União na ADI referente ao Contran
Reconheço: às vezes, sou prolixo, escrevo muito e, com isso, quem está com pressa não lê tudo o que redijo, sei muito bem disso. Então, irei direto ao ponto e deixarei, a seguir, alguns comentários adicionais e links para quem quiser se aprofundar no tema: HÁ A NECESSIDADE URGENTE DE QUE A UNIÃO INGRESSE COM EMBARGOS DE DECLARAÇÃO EM RELAÇÃO À AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE N. 2998, PARA GARANTIR A SEGURANÇA JURÍDICA DAS NORMAS VIÁRIAS.
Talvez até já esteja sendo elaborada a petição sugerida, mas não poderia deixar de, tempestivamente, apontar esta informação aos meus alunos, já que a decisão é de 10ABR19 e o prazo dos embargos é de apenas 5 dias. 1 Pronto! Esta é a informação principal. Quem estiver com tempo disponível e interesse, pode continuar….
SITUAÇÃO: Em 10ABR19, o Supremo Tribunal Federal decidiu pela INTERPRETAÇÃO CONFORME do parágrafo único do artigo 161 do Código de Trânsito Brasileiro e pela INCONSTITUCIONALIDADE do seu caput (no primeiro caso, por unanimidade, e, no segundo, em votação apertada, na qual o Presidente do STF só votou pela inconstitucionalidade para não ter que interromper a discussão e aguardar composição completa do Supremo, tendo expressado, na audiência, que concordava com o relator do processo, o qual opinava pela constitucionalidade, mas foi voto vencido; o contratempo ocorrido é que decisão relativa à constitucionalidade de leis deve ter mínimo de 6 votos no STF, conforme artigo 23 da Lei n. 9.868/99 e, se o Presidente votasse com o relator, empataria em 5×5, pois um dos Ministros da Corte não estava presente e seria o único que poderia desempatar a votação, no caso Min Luiz Fux, o que exigiria a suspensão do processo, nos termos do parágrafo único deste artigo 23).
O QUE SIGNIFICA ISSO: 1) O parágrafo único do artigo 161 do CTB estabelece que “As infrações cometidas em relação às resoluções do CONTRAN terão suas penalidades e medidas administrativas definidas nas próprias resoluções”. A “interpretação conforme” dada pelo STF significa que as Resoluções podem continuar definindo quais são as penalidades e medidas administrativas aplicáveis ao descumprimento de seus preceitos, DESDE QUE ELAS JÁ ESTEJAM PREVISTAS NO CTB, não podendo criar NOVAS SANÇÕES.
2) O caput do artigo 161 prevê que “Constitui infração de trânsito a inobservância de qualquer preceito deste Código, da legislação complementar ou das resoluções do CONTRAN, sendo o infrator sujeito às penalidades e medidas administrativas indicadas em cada artigo, além das punições previstas no Capítulo XIX”. A inconstitucionalidade decidida pelo STF refere-se ao trecho “ou das resoluções do CONTRAN”, que, doravante, passa a ser entendido como nulo; ou seja, se alguém DESCUMPRIR UMA RESOLUÇÃO DO CONTRAN, isto não será infração de trânsito.
PROBLEMAS:
1º PROBLEMA: Existem DOIS TIPOS de descumprimento de Resoluções do CONTRAN, a depender do tipo de assunto regulado por elas (o que requer uma investigação minuciosa e um conhecimento aprofundado das normas de trânsito):
I – descumprimento de preceito originalmente previsto na LEI e cujas especificações foram tratadas pelo CONTRAN, por meio de ação normativa COMPLEMENTAR, AUTORIZADA PELA PRÓPRIA LEI.
Exemplos: artigo 114, que trata da identificação veicular por meio do número de chassi (“O veículo será identificado obrigatoriamente por caracteres gravados no chassi ou no monobloco, reproduzidos em outras partes, conforme dispuser o CONTRAN”) e artigo 139-A, que versa sobre moto-frete (“§ 1º. A instalação ou incorporação de dispositivos para transporte de cargas deve estar de acordo com a regulamentação do CONTRAN”). Assim, se um automóvel não possui a gravação do número sequencial de produção do chassi (a partir do 10º dígito) nos vidros, ou se uma motocicleta utilizada no transporte remunerado de cargas tiver um baú com largura que exceda a distância entre as extremidades internas dos espelhos retrovisores estarão sujeitos, respectivamente, às infrações do artigo 237 (falta de simbologia exigida pela legislação) e artigo 231, IV (excesso das dimensões fixadas para o veículo ou sua carga), mas tais exigências exemplificadas NÃO ESTÃO na Lei e sim nas Resoluções que a PRÓPRIA LEI autorizou que o CONTRAN elaborasse (respectivamente, Resolução n. 24/98 e 356/10).
Importante destacar que, a rigor, o LEGISLADOR DE TRÂNSITO ERROU, estando o Código de Trânsito Brasileiro CHEIO DE INCONSTITUCIONALIDADES, pois, pelo artigo 25 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da CF/88, “Ficam revogados, a partir de cento e oitenta dias da promulgação da Constituição, sujeito este prazo a prorrogação por lei, todos os dispositivos legais que atribuam ou deleguem a órgão do Poder Executivo competência assinalada pela Constituição ao Congresso Nacional, especialmente no que tange a: I – ação normativa; …”; portanto, não poderia ser delegada ao Conselho Nacional de Trânsito (que faz parte do Poder Executivo) a competência para inovar na ordem jurídica (estabelecer regras novas, de observância obrigatória aos cidadãos). Não estou entrando nem no mérito sobre as vantagens ou desvantagens de se deixar a cargo do órgão técnico a atualização normativa referente ao trânsito (em vez de ficar toda a regulamentação sob responsabilidade do Legislativo), mas apenas apontando uma VEDAÇÃO CONSTITUCIONAL, lastreada pela tripartição de poderes e as funções precípuas de cada um deles.
II – descumprimento de preceito NÃO CONSTANTE DA LEI, e também NÃO DELEGADO PELA LEI ao CONTRAN, mas que este criou, de forma originária.
Exemplos:
– proibição de painéis eletrônicos em veículos (muitas vezes encontrados na parte superior do para-brisa de caminhões), nos termos do parágrafo único do artigo 9º da Resolução n. 254/07, acrescentado pela Resolução n. 580/16 (“É vedado o uso de painéis luminosos que reproduzam mensagens dinâmicas ou estáticas, excetuando-se as utilizadas em transporte coletivo de passageiro com finalidade de informar o serviço ao usuário da linha”); e
– obrigatoriedade de porte da LADV – Licença para Aprendizagem de Direção Veicular durante aulas práticas ao candidato à habilitação, prevista no artigo 8º da Resolução n. 168/04 (“Para a Prática de Direção Veicular, o candidato deverá estar acompanhado por um Instrutor de Prática de Direção Veicular e portar a Licença para Aprendizagem de Direção Veicular – LADV expedida pelo órgão ou entidade executivo de trânsito do Estado ou do Distrito Federal”).
VEJA BEM: Em ambos os exemplos acima, NÃO HÁ delegação expressa da Lei, para que o CONTRAN regulamente a matéria, a não ser que se aceitem argumentos muito mais elásticos para a compreensão desta competência normativa (seja no quesito segurança automotiva, sujeita às normas do CONTRAN, conforme artigo 103, seja na atribuição do Conselho, para regulamentação da formação de condutores, como prescreve o artigo 141). Não obstante, o CONTRAN INOVOU. A diferença principal é que, no caso da numeração do chassi no vidro e da largura do baú de motocicletas, as regras foram fixadas por Resolução, mas a Lei autorizou que o CONTRAN tratasse da matéria expressamente, enquanto que, na presente situação, houve uma decisão que se originou no Conselho, criando uma proibição e uma obrigação, como se Lei fosse. Interessante observar, inclusive, que a infração por não portar documentos é taxativa em se vincular ao CTB (art. 232. “Conduzir veículo sem os documentos de porte obrigatório referidos neste Código”), mas o CONTRAN, no Manual de Fiscalização, entende que a falta da LADV caracteriza esta infração.
Entendendo esta distinção, é de se afirmar que a decisão do STF aplica-se perfeitamente ao segundo tipo de descumprimento de norma do CONTRAN, que é aquela que, originariamente, cria obrigações ou proibições não constantes de lei e NÃO DELEGADAS pelo Legislativo. E ao primeiro tipo? Aplica-se ou não? Se formos seguir fielmente o artigo 25 do ADCT/CF, a resposta seria SIM, mas isso ocasionará uma reviravolta gigantesca na Legislação de trânsito, pois, das 775 Resoluções publicadas entre 1998 e o presente momento (além de algumas poucas em vigor, de antes do atual CTB), existem MUITAS que regulamentam dispositivos do Código e o COMPLEMENTAM com regras nele NÃO constantes, com ou sem autorização legislativa.
Sendo a decisão do STF avaliada de maneira ampla (abrangendo os dois tipos de descumprimento acima citados), todo o arcabouço jurídico de Legislação de trânsito teria que ser revisto, inserindo na própria LEI todas as regras de comportamento voltadas aos cidadãos em geral e reservando ao CONTRAN apenas as normas procedimentais para funcionamento do Sistema Nacional de Trânsito (e.g. diretrizes para funcionamento da JARI, integração do município ao SNT ou regras do processo administrativo de multa e suspensão) e, em poucos casos, a repetição de normas legais, com a simples indicação das penalidades e medidas administrativas cabíveis a cada caso, na “interpretação conforme” do STF, dada ao parágrafo único do artigo 161, mas SEM extrapolar o texto legal (isto é, fazendo um trabalho de direcionamento da aplicação do CTB).
Exemplo interessante: o artigo 148-A do CTB, incluído pela Lei n. 13.103/15 trata da exigência do exame toxicológico para obtenção (ou renovação) da CNH nas categorias ‘C’, ‘D’ ou ‘E’, determinando também um exame intermediário, no meio da validade do exame médico (§§ 2º e 3º); entretanto, não há infração de trânsito respectiva. Neste sentido, o CONTRAN, ao regulamentar a matéria definiu que, quem não fizer o exame intermediário comete a infração do artigo 162, inciso V (“Dirigir veículo com validade da Carteira Nacional de Habilitação vencida há mais de trinta dias”) – artigo 21 da Resolução n. 691/17 (particularmente, discordo, mas é o que foi previsto na norma, na falta de um enquadramento “melhor”). Este seria um exemplo da “interpretação conforme” do parágrafo único do artigo 161: o CONTRAN apenas está direcionando a aplicação do CTB ao que foi determinado pela Lei e, tão somente, regulamentado quanto ao seu efetivo cumprimento.
ESTE É O PRIMEIRO PONTO QUE MERECE QUESTIONAMENTO VIA EMBARGOS DE DECLARAÇÃO: a decisão aplica-se também às Resoluções criadas com autorização legislativa? É fato que corremos o risco, ressalte-se, de que a decisão do STF, pura e simplesmente pautada na Constituição, desconstrua toda a sistemática que vem sendo adotada na combinação CTB E RESOLUÇÕES.
2º PROBLEMA: Uma decisão de inconstitucionalidade de uma Lei possui, conforme artigo 28 da Lei n. 9.868/99, EFICÁCIA CONTRA TODOS (o que é representado pela expressão em latim “erga omnes”) e EFEITO VINCULANTE em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal. É como se, a partir da decisão do STF, aquilo que foi considerado inconstitucional passasse a NÃO MAIS EXISTIR. Assim, o artigo 161 passa a definir infração de trânsito como a inobservância de qualquer preceito DESTE CÓDIGO OU DA LEGISLAÇÃO COMPLEMENTAR, sem referência às Resoluções do CONTRAN (cabendo aqui o questionamento anterior, quanto ao alcance deste entendimento, se só ao segundo tipo de descumprimento da norma ou em ambos).
Se NÃO MAIS EXISTE o dispositivo considerado inconstitucional, a pergunta que fica é: desde quando? Desde a decisão ou desde sempre? E este é o 2º problema, pois, em regra, uma decisão em sede de Ação Direta de Inconstitucionalidade tem efeito “ex tunc”, que significa DESDE O INÍCIO e, se assim o for, TODAS AS MULTAS APLICADAS com base, unicamente, em descumprimento de preceitos constantes de Resoluções serão NULAS, cabendo recursos e até devolução de quantia paga. Só existe uma saída para que não ocorra uma avalanche de reclamações administrativas e judiciais: o Supremo decidir que, neste caso, a decisão só vale de agora em diante, nos termos do artigo 27 da Lei n. 9.898/99: “Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado”, dando-lhe, desta forma, o efeito “ex nunc” (daqui em diante). E isto NÃO FOI COLOCADO EM VOTAÇÃO DURANTE A SESSÃO DE 10/04.
ESTE É O SEGUNDO PONTO QUE MERECE QUESTIONAMENTO VIA EMBARGOS DE DECLARAÇÃO!
Pra finalizar, esclareço que a decisão em Ação Direta de Inconstitucionalidade é IRRECORRÍVEL e o único instrumento cabível, neste momento, chama-se, justamente, EMBARGOS DE DECLARAÇÃO (artigo 26 da Lei n. 9.868/99), que servem para I – esclarecer obscuridade ou eliminar contradição; II – suprir omissão de ponto ou questão sobre o qual devia se pronunciar o juiz de ofício ou a requerimento; e III – corrigir erro material (artigo 1.022 do Código de Processo Civil).
Por isto, reafirmo: HÁ A NECESSIDADE URGENTE DE QUE A UNIÃO INGRESSE COM EMBARGOS DE DECLARAÇÃO EM RELAÇÃO À AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE N. 2998, PARA GARANTIR A SEGURANÇA JURÍDICA DAS NORMAS VIÁRIAS.
Links úteis:
– Sessão completa do julgamento da ADI 2998;
– Texto que escrevi em 2009, sobre as “competências e incompetências” relativas à Legislação de trânsito;
– Item 1.2. do meu Livro “Lições de Direito Administrativo para os profissionais de trânsito”, sobre Tripartição de poderes e funções de Estado (quem se interessar pelo livro completo, está disponível em www.julyvermodesto.com.br/livros);
– Texto que escrevi em 2018, com reflexões para a gestão do trânsito no novo Governo federal;
– Audiência pública da Câmara dos Deputados, em 2015, sobre transporte escolar, em que comentei sobre a usurpação legislativa por parte do CONTRAN;
– Entrevista concedida em 11ABR19, ao Celso Mariano, do Portal do Trânsito, acerca da ADI 2998;
– Episódio 11 do meu PodCast semanal, em que abordei o tema.
1 O prazo de 5 dias começa a contar a partir da publicação do acórdão. Atualmente, o STF tem o prazo de 60 dias para publicação, prorrogáveis, mediante solicitação do Ministro relator, por igual período, conforme Resolução n. 536/14, do STF, ou seja, a questão permanece preocupante e urgente, embora com um pouco mais de tempo para que a União prepare os embargos!