O trânsito como gatilho para a violência
Chocou o desabafo e as fotos publicadas por uma “mãetorista” pelas redes sociais depois de ser agredida no trânsito por um motorista em suposto ataque de fúria e embriagado. Ela estava no carro com os dois filhos, um de 10 anos e um bebê de um ano. Provavelmente, por não ter dado a vez a um motorista apressado, ele a “fechou” no trânsito, bloqueou a progressão do veículo, deu um soco no retrovisor e outro no olho direito da mulher. Como se não bastasse o genocídio sobre rodas, os acidentes, mortes e feridos que poderiam ser evitados, o trânsito vem se apresentando como um gatilho para despressurizar a agressividade, a raiva, a frustração e a fúria de algumas pessoas. A questão é: como falar e fazer humanidade no trânsito se o ser humano está cada vez mais selvagem e brutalizado?
Casos como o do ciclista que teve o braço arrancado em uma colisão com um motorista que covarde e desumanamente atirou o membro em um córrego fétido para se livrar da prova ou do problema chocaram. Não podemos esquecer de Maristela Stringini, que depois de um desentendimento no trânsito foi derrubada da moto em que estava como carona e arrastada por cerca de 800 metros presa ao paralamas do veículo. Ela teve os dois seios mutilados e passou por meses de internação e diversas cirurgias delicadas. Nunca mais foi a mesma por dentro e por fora.
Vivemos tempos turbulentos com consequências que se manifestam no trânsito o tempo todo: pressa, individualismo, egoísmo, distração, pavio curto, algumas pessoas “estouradinhas”, sem paciência, intolerantes e agressivas. Nunca saberemos quem está dirigindo e compartilhando o trânsito conosco. Qualquer um está sujeito ao ataque de fúria do outro e o agressor agirá mesmo sem conhecer, sem saber quem somos, porque qualquer um pode ser o alvo dele. Provavelmente, que o primeiro que aparecer na sua frente sofrerá as consequências de sua raiva, frustração, recalque, descontentamento e desequilíbrio.
Não responder a violência com violência, ironia, deboche ou mostrando o dedo é a melhor forma de se defender no trânsito. Qualquer resposta ao agressor pode ser o que ele esteja esperando para acionar o gatilho, para deixá-lo ainda mais furioso e o risco de violência física aumenta. Também nunca saberemos quem está armado e poderá piorar as coisas.
Lembro aqui o caso de uma psicóloga perita examinadora do trânsito que foi agredida verbalmente por um candidato à primeira habilitação já na fase de avaliação psicológica. E a manifestação de agressividade do rapaz não ficou por aí: ao receber a devolutiva de seu teste de avaliação psicológica e as explicações sobre o porque não tinha conseguido os resultados mínimos, em um ataque de fúria ele deu um pontapé no bebedouro que ficou destruído. Disse que dirigir era um direito dele, que a psicóloga era incompetente e que não aceitava o resultado. Agora reflitam: se o candidato à primeira habilitação já faz isso durante a avaliação psicológica e na frente e contra a psicóloga, o que ele fará no trânsito quando estiver dirigindo?
Porque será que os pedestres não se agridem com tamanha agressividade e fúria? Será porque não estão vestidos de veículo? Será porque estão sem gatilho para despressurizar a raiva e frustrações? Será que sentem-se desprotegidos fora da carapaça de metal dos veículos?
Pensando bem, até quando se esbarram na calçada os pedestres pedem desculpas, dão um sorriso amistoso e seguem seu caminho. Mas, com os motoristas tem sido diferente em muitos casos, até quando o esbarrão fica apenas no quase.
Não é de hoje que a Psicologia investiga e demonstra que as pessoas “mudam” quando estão ao comando de um veículo: sentem-se protegidas, algumas buscam autoafirmação, compensação para algum tipo de sentimento de inferioridade e ate o utilizam como válvula de escape para despressurizar a agressividade. Mas, o que estamos fazendo com esses conhecimentos e conclusões acerca de algo tão sério e que vem se manifestando com mais frequência no trânsito?
Briga de casal ao volante, briga de trânsito com estranhos, ataques de fúria e até o veículo usado como arma ou gatilho para ferir e matar. Como se não bastasse a falta de autocuidados, os acidentes que poderiam ser evitados, os mortos, os feridos por outras causas no trânsito, ainda temos que aprender a lidar e a se defender dos ataques de fúria de certos condutores. Como falar e fazer humanidade no trânsito diante de tamanhas demonstrações torpes de brutalidade? Será alguma nova doença ou epidemia para agravar ainda mais a violência mno trânsito como problema de saúde pública?