O carro como fetiche e os homens de lata
A palavra “fetiche”, embora seja muito empregada com conotação sexual, é aportuguesada de “feitiço”, que por sua vez, tem origem no latim “facticius”, que quer dizer artificial, fictício. Também pode significar um objeto material ao qual se atribuem poderes mágicos ou sobrenaturais positivos ou negativos.
Isso remete ao carro como fetiche em função da sua representação social. Não são poucas as propagandas de concessionárias e fabricantes que associam o carro à felicidade com aqueles apelos absurdos do tipo: compre este carro e tenha status, ou tenha poder sobre os outros.
Há ainda aquelas propagandas que associam determinado carro ao bom gosto, ao estilo, à realização pessoal e ao fato de ser bem sucedido. Algumas vão ao extremo, como uma propaganda recente em que o motorista ateava fogo ao seu próprio carro (e olha que era um carro moderno) depois que viu um desses objetos fetichistas sobre rodas passar por ele numa rodovia.
Mas o Camaro amarelo arrasou na demonstração do fetiche, do apelo consumista e da inversão de valores: o rapaz sentia-se inferiorizado, correndo atrás da moça que fazia questão de evitá-lo. Mas, um belo dia, ele fica rico, compra um Camaro amarelo, e do dia para a noite fica doce que nem caramelo, fica na grife, fica bonito, tira onda e passa a sobrar mulher. Eis a materialização em música da inversão de valores de uma sociedade que valoriza o outro pelo carro que ele tem e não pelo que é.
Só que o mais perigoso disso tudo é que as pessoas passam a acreditar que o carro se torna a forma mais importante como elas se apresentam para a sociedade em função do status, do poder econômico, da suposta influência que passam a ter. Na verdade, essa falsa sensação de poder que o carro dá para algumas pessoas em função da marca, do ano, do status, da auto-afirmação, faz com que elas transformem, não só ao dirigir, mas também na forma como vivem em sociedade. E assim, o trânsito vai se tornando reflexo do valor que as pessoas dão ao carro e não à elas mesmas e aos outros.
Essa falsa sensação de poder e de prestígio social em função do carro é que faz com que sintam-se poderosos para acelerar uma máquina que pode fazer até 300km/h em rodovias cuja sinalização máxima permitida é de 110km/h.
Quem sabe seja essa falsa sensação de poder que faça com que alguns motoristas estacionem em locais proibidos, em vagas preferenciais ou ajam em qualquer situação no melhor estilo “eu sou o meu carro”.
O fato é que os carros, essas carapaças de lata conectadas por um emaranhado de fios e pela complexidade da tecnologia, deveriam ser instrumentos para facilitar a vida das pessoas e para servir ao próximo e não um símbolo de poder, de status e de falsa sensação de felicidade.
Vivendo em pleno século 21, em que os carros diminuem distâncias, as pessoas estão mais distantes umas das outras pelo individualismo e mais próximas pelos interesses. O que vejo é que as coisas estão se invertendo: o carro, um objeto, está se transformando no principal e as pessoas em acessório. Pessoas estão virando objetos e os carros se personificando na imagem da riqueza, da felicidade, do status e do poder.
O modo como certas pessoas e a sociedade valorizam o carro como fetiche me faz lembrar de alguns personagens de L. Frank Baum, em “O Mágico de Oz”: o espantalho e o homem de lata.
O maior desejo do espantalho era ter um cérebro, o que deveria ser o maior desejo de muitos motoristas que buscam no carro o ideal de felicidade.
O homem de lata de L. Frank Baum perdeu o coração, e com ele o amor pelas pessoas. Os homens de lata da vida real pensam que são seus próprios carros. Também precisam de um coração para voltar a amar as pessoas pelo que elas são e não pelo que elas tem.