26 de dezembro de 2024

Nós usamos cookies para melhorar a sua experiência em nossos sites, personalizar publicidade e recomendar conteúdo de seu interesse. Ao acessar o Portal do Trânsito, você concorda com o uso dessa tecnologia. Saiba mais em nossa Política de Privacidade.

26 de dezembro de 2024

Não foi acidente nem fatalidade: foi crime!


Por Márcia Pontes Publicado 27/06/2016 às 03h00 Atualizado 02/11/2022 às 20h26
Ouvir: 00:00
Dirigir embriagado é crimeFico pensando no que passa pela cabeça de quem tira a vida de alguém no trânsito.

Fatalidade: aquilo que é fatal. Um destino que não se pode evitar. Fatal: sinônimo de mortal, que remete à morte. Mas, também, aquilo que é marcado por um destino inevitável.  Uma vez que os acidentes de trânsito em mais de 90% dos casos podem ser evitados, porque continuamos a nos referir a crimes de trânsito como fatalidade? Porque continuamos tratando aquilo que pode ser evitado como vontade de Deus, “chegou a hora dele” ou simplesmente como “acidente”, um evento fortuito que não se pode prever?

Será que o motorista que bebe, dirige, assume o risco de ferir e de matar não poderia prever a consequência de seus atos? Ou se acha um Deus, um Papael (personagem fictício do Sul do Brasil que se auto-rotula indefectível) de corpo fechado contra quem nada pode ou vai acontecer? Quem está brincando com o destino de quem em nome da heresia de que é vontade divina?

Quando alguém dispara o seu gatilho no trânsito sabem o que sobra além do sofrimento, da dor, da vida interrompida pelas mãos de um criminoso no trânsito? Sabem o que sobra além do vazio, da saudade e da morte em vida?

Se pudéssemos dizer o que sobra em forma de bilhetes deixados às vítimas de acidentes de trânsito, leríamos a saudade da mãe que escreveu: “Filho, deixei o seu prato no microondas. É só esquentar.”

Talvez lêssemos o bilhete da esposa que saiu antes do marido para trabalhar ou levar as crianças na escolinha e que dizia: “Amor, não esquece a festinha do Dia dos Pais. É às 15 horas.”

Ou quem sabe pudéssemos ler o email ou mensagem de um amigo distante que reapareceu: “Oi, lembra de mim! Sou o Jorge, seu melhor amigo de infância! Há quanto tempo, hein! Vamos marcar um chope hoje para lembrar dos velhos tempos?”

Quem sabe pudéssemos ler o bilhete do pessoal do escritório, dizendo: “Não esquece o futebol hoje à noite. Você é o titular do time!”

Quem sabe ainda pudéssemos ler o bilhete deixado pela filha ao pai em que dizia: “Paizinho, não se preocupe. Volto logo depois da aula na faculdade.”

Poderíamos ler qualquer coisa para alguém que saiu de casa e nunca mais voltou. Poderíamos ler palavras, olhares, gestos. Mas, destinos ainda não podemos ler. Isso a Deus pertence!

Quanta gente foi embora cedo demais antes mesmo de cruzar o portão de casa porque um motorista bêbado perdeu o controle do carro e o esmagou contra o muro ou portão!

Quantas pessoas não deram o próximo passo ao caminhar na rua porque alguém com a cuca cheia de bebida alcoólica, drogas, irresponsabilidade e desumanidade assumiu um volante e dirigia perigosamente por aí?

Avós com netinhos, mães com seus filhos, trabalhadores, crianças, mães empurrando o carrinho de bebê, trabalhadores indo ou vindo para um dia de lida… Não há distinção. A morte pediu carona, mas não levou quem consentiu que ela sentasse ao seu lado: ela leva sempre um ou mais inocentes e tem o incrível poder de provocar ouras mortes além daquela do corpo físico. Leva à morte a família, o bebê ou criança que vai crescer sem os pais.

Quando motoristas mordem qualquer tipo de isca que altera o seu comportamento, atitudes, práticas e o estado psicomotor o resultado sempre será a morte de alguém. Ainda que a morte em vida.

Fico pensando no que passa pela cabeça de quem tira a vida de alguém no trânsito e confesso que é uma pergunta tão enigmática quanto aquela: “De onde viemos?”, “Para onde vamos?”, ou até mesmo: “Existe vida após a morte?”

Será que essas pessoas morrem em vida também? Será que se arrependem de verdade? Será que a consciência e a culpa os deixam dormir? Será que conseguem olhar nos olhos do que morre em suas mãos? Será que por um minuto são capazes de se colocar no lugar do outro e de suas famílias?

Leia mais sobre esse assunto:

Motorista bêbado que mata no trânsito comete crime doloso, decide STF

Sempre ouvimos mais relatos de criminosos do trânsito que saem rindo de audiências em que respondem como réus por terem tirado a vida de alguém no trânsito do que de réus que olham nos olhos de quem ficou e pedem perdão. Será que tem?

O fato é que quem nos foi tirado à força jamais voltará e temos de aprender a lidar com isso todos os dias, cada minuto de nossas vidas mortas em vida.

O fato é que temos de aprender a conviver com a dor com a certeza de que não poderemos mais tocar quem amamos além da memória e da saudade. Essa é uma marca que carregamos e que temos de aprender a suportar.

Mas, o que não dá para suportar mesmo, de verdade, é ver a sociedade inteira repetindo por aí, como um papagaio de pirata ou calopsita que canta o hino do Brasil, que foi uma fatalidade.

Fatalidade é você caminhar na rua e um pombo acertar a sua cabeça. Beber e dirigir tem outro nome e o resultado disso não é acidente. Não é destino. Não é vontade de Deus. É crime!

E precisa ser exemplarmente punido para que outros não sejam esquecidos e continuem tendo a sua morte naturalizada por um discurso de que nada se podia prever e nada se poderia fazer.

Comentar

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *