“Tuning”: criado a nossa imagem e semelhança
Como alternativa aos intermináveis engarrafamentos nos quais nos vemos imobilizados diariamente durante horas, o humorista e cartunista Maringoni utiliza a figura de um inusitado personagem existente no trânsito: o pedestre. Ele afirma que, por mais incrível que pareça, mesmo tratando-se de uma prática antiquada e obsoleta, ainda existem pessoas que andam a pé! Pés que, segundo o autor, “[…] são aquelas extremidades usadas para se acionar outra parte do corpo humano: os pedais do automóvel”.
De forma irônica, ele defende a ideia do automóvel como extensão do próprio corpo, definindo-o como “[…] órgão indispensável do corpo humano, o automóvel rege nossas vidas, mesmo que você não tenha um. Como se sabe, o homem começou andando de quatro, ficou de pé como homo erectus e agora ficou de quatro, novamente. De quatro rodas”.
Entretanto, Maringoni adverte quanto à dificuldade em aderir à prática do ato de caminhar, já que, segundo o mesmo, essa é uma prática que necessita que a pessoa fique na posição vertical, posição que não é a natural do corpo humano, ou seja, sentada num banco de automóvel a maior parte do tempo. Por isso, ele elenca uma detalhada série de instruções ensinando, passo-a-passo, a prática de caminhar. Mas, por fim, ele tranquiliza o aspirante a pedestre, incentivando-o a não desistir e afirmando: “Logo você perceberá que essa prática é tão natural quanto respirar ou dirigir”.
O carro é construído, segundo diversos autores, como um prolongamento dos corpos dos homens, em particular. Além disso, parece ser um prolongamento de seus sentimentos, suas vontades e seus gostos. Esse prolongamento sugere um processo de transformação dos corpos que nos faz, consequentemente, retomar a nossa relação com a máquina, sobre a nossa potência a partir da máquina e sobre a máquina que agrega características humanas.
Há muitas formas de se personalizar um carro e de incorporá-lo como uma extensão do corpo. As questões sobre as corporificações da máquina ganham espaço no mundo automobilístico a partir da prática do tuning e de diferenciações na escolha de acessórios. O tuning trata, em alguns casos, de caracterizar o carro com aspectos bastante humanos. A função de tornar um carro tunado é fazê-lo ter as características mais pessoais possíveis, seja em aspectos que digam respeito a características de um determinado grupo, seja em aspectos bem singulares, o que acarreta, muitas vezes, numa mudança quase total no design do carro. A priori, esses carros não tem valor comercial, porque cada carro está adaptado ao seu dono ou a quem o idealizou. O carro torna-se, então, exclusivo, e a ideia é que esse carro não seja vendido, porque ele é a marca registrada, singular, de quem o possui. Assim, o carro tunado parece ter aquilo que é só de um sujeito, mas, de certa maneira, confirma o que se espera dos sujeitos e apresenta a sua relação com a sociedade.
Isso me faz lembrar um episódio que me ocorrera no trânsito. Certa feita, deparei-me com uma cena memorável e no mínimo curiosa. Enquanto trafegava por uma movimentada avenida de Porto Alegre, fui surpreendido por uma manobra inesperada de um carro que trafegava na pista ao lado. O carro em questão, assim que visualizou uma brecha de alguns metros entre a frente do meu carro e o carro que estava a sua frente, não hesitou em trocar de faixa, sem ao menos dar sinal. Assim que ultrapassou o carro que estava a sua frente (pela direita, diga-se de passagem) acelerou sem se importar com os sons da frenagem que fui obrigado a executar para não abalroá-lo por ter “cortado” a minha frente.
Tratava-se de um Volkswagen Gol, já com uns bons dez anos de uso, mas muito bem conservado. Era de cor dourada. Tinha rodas de liga leve tão grandes que quase não cabiam sob os para-lamas. Suspensões rebaixadas e vidros com películas tão escuras que mal se podia enxergar se quem o conduzia era homem ou mulher. Como se costuma usar nas gírias do trânsito aqui do sul, o legítimo carro de “Magal”.
Como há muito tempo as questões ligadas ao trânsito me interessavam, aquele ato me instigou a refletir. Acompanhei então de longe aquele veículo que seguiu com suas manobras e peripécias por entres os demais carros que ultrapassava, sem nunca dar sinal algum, é claro. E, enquanto observava, me peguei pensando: quem estaria a conduzir aquele carro? Que tipo de pessoa? Com que motivações? Por que aquela pressa tão grande a ponto de, com suas manobras, por em risco não só a sua vida, mas as dos outros condutores porque passava?
Tais questões me inundaram a mente de tal forma que, sem que me desse por conta e mesmo seguindo em velocidade igual ao fluxo normal do tráfego, acabei alcançando aquele mesmo veículo que me “cortara a frente” há uns dois ou três semáforos atrás. Parados lado a lado no sinal vermelho, continuei a observar o carro, na tentativa de ter alguma pista de quem poderia estar por de trás daqueles vidros. Porém, com uma motivação pura e simplesmente científica. A curiosidade me tomou de tal maneira que não sobrou espaços para qualquer tipo de gesto de hostilização rancorosa ou moralista. Interessava-me apenas descobrir se havia alguma relação de similaridade entre carro e dono.
Foi quando, repentinamente, um dos vidros do carro baixou e minhas expectativas foram atendidas. De dentro do carro pude enxergar dois jovens, de não mais que vinte e cinco anos, ambos de bonés coloridos e sem camisas. Percebi que aquele que estava ao volante me dirigiu a palavra, mas, por estar com o rádio do meu carro ligado, não pude ouvir do que se tratava. Baixei o volume, voltei a cabeça para a janela fazendo sinal de que não havia escutado para que ele repetisse. Foi quando ele, com tom irritadiço, perguntou: “o que tu tá olhando, meu?!”. Confesso ter ficado um tanto quanto perplexo pela sua pergunta. Primeiro pelo fato de ter me pegado completamente de surpresa. E segundo por não entender o porquê do seu tom nervoso. Decidi então me fazer de rogado e fazer novamente sinal de que não havia entendido a sua pergunta, quando ele repetiu novamente, dessa vez parecendo estar ainda mais indignado: “o que tu tá olhando, meu?!”.
Fiquei intrigado pela forma como o simples fato de eu estar olhando para o seu carro o deixou irritado. Tão irritado quanto se eu estivesse olhando para sua esposa, por exemplo. Ou até mesmo encarando o próprio condutor. Volto a lembrar que, pelo tom da película, era impossível enxergar o que quer que fosse dentro do veículo. Tendo certeza de que, pela sua pergunta e pelo seu tom de voz, nenhuma resposta que eu viesse a dar poderia acabar esse diálogo de maneira amigável, decidi me limitar a rir de forma irônica levantando o vidro do carro e seguindo, assim que o sinal abriu, o meu caminho.
A “personalização do carro” passa por um enfoque de cumplicidade. O carro é colocado não somente como um objeto de consumo e utilidade, mas também como uma extensão dos corpos. Nesse caso, nós e a máquina complementamo-nos e, hibridizando-nos, nos constituímos. Parafraseando o cartunista e humorista Maringoni quando diz que “Deus criou o homem e esse, tempos depois, criou o automóvel a sua imagem e semelhança, caberia, nesse contexto, a concepção de um décimo primeiro mandamento: não cobiçarás o veículo do próximo!”.