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Sujeito humano: animal social?


Por Rodrigo Vargas de Souza Publicado 02/07/2017 às 03h00 Atualizado 02/11/2022 às 20h18
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Carro como armaFoto: Arquivo Tecnodata.

Nietzsche afirma: “Nós, homens do conhecimento, não nos conhecemos, de nós mesmos somos desconhecidos – e não sem motivo. Nunca nos procuramos: como poderia acontecer que um dia nos encontrássemos?”. Haraway traz no livro Antropologia do ciborgue: As vertigens do pós-humano, justamente essa que é uma das questões centrais não apenas desse texto, mas para a própria Psicologia: “a final, quem somos nós?”. Quem é o “homem”?

Para buscar subsídio para tais interrogações, julguei ser fundamental começar por algumas definições clássicas acerca do conceito de “homem”. No Dicionário de Filosofia de Nicola Abbagnano estão agrupadas algumas definições bastante interessantes. A primeira, muito conhecida, diz ser o homem um “animal racional”. Afirmação que remete a Platão, que teria dito que o homem é um animal “capaz de ciência” e, essencialmente, a Aristóteles, quando afirmou ser “o homem o único animal que possui razão”, que no caso serviria para “indicar o útil e o pernicioso, portanto também o justo e o injusto”. Essa concepção destaca o homem entre os animais pelo seu intelecto, pela sua capacidade de pensar e falar, ou seja, por ser um animal simbólico.

Uma segunda forma de definir o homem destaca sua natureza política, sociável. Novamente, as referências serão Platão e Aristóteles que faziam uma conexão entre racionalidade e política. Para este último, “quem não pode fazer parte de uma comunidade ou quem não precisa de nada, bastando-se a si mesmo, não é parte de uma cidade, mas é fera ou Deus”. O significado mais aceito para o que Aristóteles quis dizer é que o homem não pode deixar de viver em sociedade.

Sendo assim, é possível inferir que o homem é um animal social. Ora, sabemos que isso se deve a diversos fatores biológicos e históricos, dentre outros. Desde os primórdios, os ancestrais mais primitivos do homem apresentavam características gregárias e nômades. Apresentavam características gregárias devido a sua condição de fragilidade biológica e, portanto, como forma estratégica de obtenção de alimentos e proteção da sua prole viverem da caça e da coleta de vegetais. Apresentavam características nômades, pois precisavam buscar constantemente novos locais com melhores condições para seu provimento, o que impossibilitava o transporte de muitos objetos ou alimentos. À medida que suas proles aumentaram, houve a necessidade de aumentar tanto a quantidade de vegetais extraídos quanto o tamanho de suas presas. Assim, a formação de grupos maiores se fez necessária como estratégia de caça, uma vez que, sendo um espécime que não dispõem de afiadas garras, longas presas ou mesmo qualquer tipo de couraça, sua fragilidade era compensada pela formação destes bandos.

Se os ancestrais mais primitivos do homem apresentavam características gregárias devido a sua condição de fragilidade biológica e como forma estratégica de obtenção de alimentos, o homem contemporâneo já não padece deste infortúnio, pois dispõe a seu favor de um maravilhoso invento tecnológico que mudou completamente a sua vida: o automóvel. Admito que, embora haja aqui um grande salto histórico-temporal que prejudica a dimensão genealógica, os processos constantes nesse entremeio não foram esquecidos ou ignorados. Por ser um revestimento de metal, o automóvel serve como armadura física contra as ameaças (sejam imaginárias ou reais) da vida urbana moderna. Armadura esta que, ao ser vestida, segundo o jornalista, publicitário e especialista em prevenção no trânsito Fernando Pedrosa, “nos torna poderosos, imbatíveis, quase imortais”. Uma imortalidade própria dos deuses.

O que me leva a retomar a obra do psicólogo social romeno Moscovici, A máquina de fazer deuses, onde afirma, figurativamente, ser essa máquina a sociedade. Bem, se há hoje na sociedade uma máquina, no sentido literal, capaz de transformar homens em “deuses”, essa máquina chama-se automóvel. Muito embora o significado desse “empoderamento” seja muito peculiar. Certos condutores sentem-se como deuses quando dentro de seus carros por diversos outros fatores, menos por se tornarem imortais. Independentemente do quanto se invista em tecnologia e segurança veicular, os números de mortes no trânsito teimam em aumentar exponencialmente.

Portanto, baseando-se nas definições aristotélicas acerca do homem e na observação do comportamento dos condutores, pode-se afirmar com segurança que o homem não é deus, por não gozar da imortalidade. Nem tão pouco fera, pois segundo as mesmas definições o homem seria um “animal racional” – embora muitos atos cometidos no trânsito não sejam explicados por razão alguma. Essas observações me instigam e me levam ao questionamento: se é o homem um animal social, o motorista, por sua vez, seria um animal antissocial? Certamente não. Pois, como bem lembram Biavati e Martins, “[…] em uma cidade ninguém é autossuficiente, dependemos uns das atividades dos outros todos os dias, pois vivemos em sociedade”. Do contrário, quem iria construir os nossos carros? Abastecê-los? Para quem exibiríamos nossas demonstrações de exímia perícia ao volante, bem como nossos poderosos e ensurdecedores autofalantes? Ou pior, com quem discutiríamos quando os engarrafamentos se formassem? Certamente o trânsito seria um lugar muito sem graça… Enquanto isso, o homem segue sua saga de tentar viver em sociedade, sentindo-se um Deus e agindo como fera. Fica a questão: seria a emergência de outro modo de existência?

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