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Humanizar o trânsito: será realmente a solução?


Por Rodrigo Vargas de Souza Publicado 06/04/2018 às 03h00 Atualizado 02/11/2022 às 20h15
 Tempo de leitura estimado: 00:00
Trânsito mais humanoFoto: Pixabay.com

No último dia 18 de março, um acidente envolvendo um carro autônomo da Uber levou a morte de uma mulher de 49 anos no Arizona. Esse é o primeiro atropelamento de pedestres por veículos autoguiados que se há registro. O ocorrido levou a empresa a cancelar temporariamente todos os testes utilizando carros autônomos no Canadá e nos Estados Unidos.

Entretanto, se observarmos as gravações de vídeo feitas a partir do veículo, assim como as declarações feitas pelas autoridades de polícia local, a pedestre atravessava a rua em local inapropriado para a travessia e em condições de baixa luminosidade, o que tornaria difícil de evitar o atropelamento mesmo que um ser humano conduzisse o veículo.

Há alguns dias lia um artigo que falava sobre a necessidade de humanizar o trânsito. Essa expressão, confesso, me deixou um tanto incomodado. Naquele contexto, humanizar significava fazer com que as pessoas cumpram as regras no trânsito. Algo que parece óbvio para a maioria das pessoas. Não todas…

Sendo assim, comecemos por buscar algumas definições desse complexo termo:

HUMANIZAR

verbo 

1. transitivo direto e pronominal

tornar(-se) humano, dar ou adquirir condição humana; humanar(-se).

“a fábula humaniza os animais”

 2. transitivo direto e pronominal

tornar(-se) benévolo, ameno, tolerável; humanar(-se).

“h. um trabalho”

 3. transitivo direto e pronominal

tornar(-se) mais sociável, mais tratável; civilizar(-se), socializar(-se).

“h. um selvagem”

 4. transitivo direto

CE amansar (animais); domar.

Dessa forma, a expressão “humanizar”, no contexto do trânsito, significaria torná-lo mais calmo, mais tranquilo, mais ameno. Um trânsito com mais tolerância, mais civilizado, como a maioria dos seres humanos. Não todos…

Cabe ressaltar, no entanto, como bem lembra o filósofo alemão Marc Jongen, a questão da humanidade é algo convencionado basicamente pela cultura de cada época e local. Um bom exemplo disso são as sociedades escravagistas, nas quais o status de ser humano era parcial ou completamente negado aos escravos. A definição biológica moderna de ser humano, em detrimento da acepção cultural, como sendo todo(a) aquele(a) que vem ao mundo com o código genético do Homo sapiens, foi uma grande conquista herdada do Iluminismo. Apesar dessa naturalização do que é ser humano ter possibilitado atribuir direitos em comum a todos aqueles da espécie Homo sapiens, nos levou até a atual situação antropocentrista da nossa sociedade.

Porém, diante dos avanços constantes das biotecnologias e da inteligência artificial, os questionamentos do homem acerca da sua “humanidade” – e mesmo de sua centralidade – passam a ser cada vez mais constantes. Quando há a possibilidade de que uma máquina se iguale ou até mesmo supere o desempenho de quem a criou, que o homem possa ser clonado ou mesmo ter seu código genético modificado, o sentido da “humanidade” tende a ser repensado. A partir do momento em que a existência humana puder ser confundida ou igualada à existência da máquina, o homem pode ser entendido como nada além de simples matéria. Matéria meramente programada como a máquina. Sem nenhuma transcendência ou qualquer característica que a eleve acima das outras.

O sociólogo polonês Zygmunt Bauman relembra, em sua obra Amor Líquido, uma breve citação de Hannah Arendt, filósofa política alemã, onde ela, profeticamente, diz que “o maior perigo para a humanidade era a abstrata nudez de não ser nada além de humana”. Segundo ela,

“o mundo nada descobriu de sagrado na abstrata nudez do ser humano”.

Assim como o filósofo alemão Friedrich Nietzsche que, já no final do século XIX, teve o mérito de reconhecer que o homem é algo que deve ser superado, criticando o fato de o ser humano ser demasiadamente humano. Ele afirma que a doença do homem seria sua própria humanidade. Bem ou mal, o ser humano, parafraseando o poeta Ferreira Gullar, ainda me parece a maior invenção de si mesmo.

Visto isso, será mesmo “humanizar” a melhor solução para a atual situação do nosso trânsito? Tornar(-se) benévolo, ameno, tolerável; tornar(-se) mais sociável, mais tratável; civilizar(-se), socializar(-se), ainda são (ou já foram algum dia) valores associados à humanidade? No presente serão esses mesmos os valores esperados que um ser humano tenha? Que valores têm os seres humanos? Que valores têm as máquinas? Que valor tem a vida humana que mereça distinção de qualquer outro tipo de vida?

A protagonista do filme O Exterminador do Futuro 2: O julgamento final, Sarah Connor, afirma, em uma emblemática frase imbuída de valores ligados à modernidade, no final do filme que “se uma máquina aprendeu o valor da vida humana, talvez os humanos também a compreendam”. Será? Questões que, por mais que a ciência e  a tecnologia avancem, parecem estar longe de serem respondidas.

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