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Carro, nascido em berço esplêndido


Por Rodrigo Vargas de Souza Publicado 25/08/2017 às 03h00 Atualizado 02/11/2022 às 20h18
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Rua com carros antigosFoto: Freeimages.com

No decorrer da nossa história, procuramos criar tecnologias que facilitassem a vida. De acordo com a necessidade de cada período as ferramentas criadas evoluíam. Com o início da Revolução Industrial criamos máquinas e métodos que mudaram drasticamente o modo de produção, influenciando as relações sociais. Este momento de grandes transformações, em meados do século XIX e no início do século XX, coincide com o advento de uma máquina de transporte individual que vai transformar sensivelmente toda a sociedade humana: o automóvel.

Sobre o automóvel, Giucci [1] vai afirmar que:
O automóvel é o símbolo por excelência do moderno no início do século XX. Sua chegada a diferentes partes do mundo ilustra a trajetória irresistível da mobilidade. Chega a máquina bufante, o novo sáurio mecânico, o carro de fogo, envolvido numa nuvem de pó. E montado no cavalo mecânico chega o mensageiro da motorização. Enquanto o arauto medieval levava mensagens, determinava as festas de cavalaria e organizava os registros da nobreza, o piloto introduz o não visto e o estranho, na forma de antecipação do futuro. Vem de longe anunciando grande transformação.
Segundo Ballard[1], a compreensão da identidade ambígua produzida pelo amplo surgimento de máquinas durante o século XX pode ser alcançada com o estudo do automóvel devido ao impacto cultural e subjetivo que este ocasionou. Desde o seu advento, no final do século XIX na Europa, o automóvel cruzou o mundo, conquistando as cidades e transformando-se em protagonista da vida cotidiana.
Desde o século XVII já se idealizavam veículos automotores impulsionados a vapor. Desde então, diversos experimentos foram sendo feitos simultaneamente em diversos países da Europa e Estados Unidos. No entanto, se consolidou a ideia de que os primeiros automóveis foram, de fato, criados somente a partir do invento do motor de combustão interna à gasolina. Se aceita que esse tipo de motor tenha surgido simultaneamente através do trabalho independente de vários inventores alemães, muito embora se atribua a invenção do primeiro carro ao alemão Karl Benz, no ano de 1885, em Mannheim, patenteando-a no ano seguinte[2].
No Brasil, temos o registro de que o primeiro veículo a rodar no nosso solo tenha sido trazido da França por Santos Dumont, (o “Pai da Aviação”). Segundo o historiador Melo[3], desde muito jovem, Dumont tinha muito interesse pelas “fascinantes máquinas modernas”. Por isso, em 1890, ele adquiriu seu primeiro carro, um Peugeot, que foi desembarcado no porto de Santos no ano posterior. Acontecimento que causou um enorme alvoroço. Durante a década de 30, algumas empresas estrangeiras, como Ford e General Motors, começaram a investir no país. No entanto, somente após a Segunda Guerra Mundial, com a eleição de Juscelino Kubitscheck para presidente da república, em 1956, que a produção de automóveis de intensificou no país[4].
Segundo Silva[5], o automóvel surge em meio a um sonho de domínio sobre a natureza, e a “automobilidade” é apresentada como uma conquista social. O automóvel, rapidamente, ganha status de objeto de desejo, reforçado pelas estratégias de propaganda: lema preponderante: conquiste a liberdade! Sobretudo, é incontestável que o automóvel vem se colocando neste lugar como um objeto de desejo, chegando mesmo a assumir um papel de fetiche como mercadoria, fenômeno social e psicológico, onde as mercadorias aparentam ter uma vontade independente de seus produtores.
Na “sociedade do espetáculo”, que segundo o sociólogo Guy Debord [6] é a forma de ser da sociedade de consumo que, graças à mídia, é uma sociedade de imagens, o automóvel tornou-se uma das mercadorias mais cobiçadas, em torno da qual o discurso publicitário constrói mitos. Um exemplo bem atual disso é trazido por autores [7] que analisaram o famoso slogan de uma das mais conhecidas redes de postos de gasolina que se diziam “Apaixonados por carros como todo o brasileiro”.
Assim, como podemos observar acima, a mídia vem exercendo papel fundamental na consolidação da onipresença do carro, principalmente ao produzir a demanda de possui-lo. Ninguém procura um determinado produto ou serviço de forma espontânea. Toda demanda, portanto, é produzida pela oferta[8]. Esse processo se torna evidente se prestarmos atenção nas propagandas de carro que surgem a cada ano, pois é vendida a ideia que o carro novo possui um item que o anterior não tinha e que, mesmo esse item não sendo extremamente necessário, é exaltado como tal.
Atualmente a mídia se utiliza de artimanhas cada vez mais elaboradas para esse fim, inclusive atribuindo características humanas aos veículos, como: força, potência, beleza. As propagandas também são pensadas de acordo com a cultura na qual elas estão inseridas. Carros voltados ao mercado asiático, por exemplo, possuem faróis mais alongados para se assemelharem aos olhos orientais. E como citado acima, a mídia também tem produzido hábitos, como o do cuidado com o veículo, que se estende ao abastecer o veículo em determinado local, pois o combustível é melhor até a limpeza-veneração do mesmo aos final de semana.
Castro[6] vem ao encontro dessas ideias quando identifica no trabalho da publicidade a transferência de atributos humanos para os produtos a serem vendidos. E a publicidade do automóvel é exemplo clássico de como a mercadoria pode relacionar-se com o consumidor como se fosse um “indivíduo”, que sempre leva vantagem em relação a este.
Desta forma o sujeito humano é “reificado”, ou seja, rebaixado à categoria de mera mercadoria, e a mercadoria é “humanizada”.
O carro provoca uma total modificação estrutural do nosso entorno, uma adequação da sociedade para servir ao ser supremo automóvel, garantindo a sua utilização hegemônica enquanto meio de transporte[5]. Essa adequação faz com que o carro possua um significado social que o eleva de simples objeto, ferramenta de locomoção, a um nível cultural, que requer um estudo antropológico para entender a sua valoração na sociedade. Sim, antropológico, pois essa valoração produz uma “cultura do carro”, que é expressa em músicas, em expressões de linguagem, em rituais de ablução e, em alguns casos, ele pode representar até mesmo um rito de passagem para a maioridade[9].
Para melhor definir o imaginário que circunda o carro, Macedo[10] utiliza o poema do escritor Fernando Bonassi, que diz ser o carro:
O lugar onde se morre esmagado, de repente. O lugar onde se morre de nervoso, aos poucos. O lugar de pobre parir. O lugar de rico crescer. O lugar das meninas darem… ou descerem. O pinto dos meninos apressados. O lugar de polícia esnobar cidadão. O lugar de cidadão esnobar polícia. O lugar das maiores conquistas nacionais. O lugar das melhores perversões sexuais. O lugar onde presidente acena. O lugar onde voa o ovo. O lugar onde há muito macho. O lugar onde a carne é fraca. O lugar blindado, é dinheiro. O lugar aberto, é convite. O lugar alagado, é prejuízo. O lugar molhado, é gostoso. Um bom lugar pra conversar. Um lugar de arrepiar. Um lugar moderno que passa. Um lugar na lata. Um sonho que consome.
No clássico livro Admirável Mundo Novo (Brave New World), de 1932, um futuro hipotético é apresentado, onde é descrita uma sociedade fictícia totalmente mecanizada. As preocupações de Huxley com as consequências da reprodução dirigida estavam intimamente relacionada com o Fordismo, sistema de produção em massa e gestão idealizadas pelo empresário norte-americano Henry Ford que aperfeiçoou a linha de montagem dos automóveis da época. Tanto é que a história se passa em uma era que suplanta o cristianismo, já que a contagem dos anos é seguida pela abreviação “d. F.”, ou seja, depois de Ford, marcando a introdução do Modelo T como data de início desta era.
Tão grande foi a sensação proporcionada pelo automóvel no século passado que este passou a figurar como astro também nas telas de cinema. Um dos primeiros e mais memoráveis clássicos a retratar um automóvel a protagonizar um filme foi Se Meu Fusca Falasse… (The Love Bug, 1968), o primeiro de uma série de filmes de Walt Disney que fez muito sucesso nos cinemas, que conta as aventuras de um Volkswagen Fusca chamado Herbie que possuía vida própria.
Outro importante espaço de culto ao automóvel remete aos desenhos animados, onde se podia assistir durante as manhãs do canal SBT (Sistema Brasileiro de Televisão) uma série animada chamada Pole Position. Nela, três irmãos, entre apresentações como dublês e competições de corrida, procuram pelo pai desaparecido e combatem o crime, trabalhando para uma organização secreta homônima. Contavam ainda com a ajuda de dois veículos de alta tecnologia, chamados de “Rodão” e “Wheels”, equipados com unidades de inteligência artificial que conferiam a cada carro personalidades próprias.
Nesta mesma época, a Hasbro, uma das maiores empresas de brinquedos do mundo, decide adaptar uma linha de bonecos da japonesa Takara e, para dar suporte à linha ainda sem um enredo, encomenda uma série de quadrinhos da Marvel Comics e desenhos animados, dando origem, em 1984, à franquia Transformers. O sucesso foi tão grande que levou a mais brinquedos e continuações, como animações digitais, animês, jogos de vídeo games até culminar em longas metragens. O enredo de Transformers (2007) é basicamente formado por robôs alienígenas fictícios capazes de transformar seus corpos em objetos inócuos como veículos.
Para finalizar esta abordagem calcada em animações infantis, é importante também citar o filme Carros (Cars, 2006), um filme americano de animação em computação gráfica, produzido pela Pixar Animation Studios e distribuído pela Walt Disney Pictures. O enredo aqui tem pouca relevância, o que importa apontar é que Carros é um filme animado com personagens inteiramente não-humanas. Diferentemente das obras citadas a cima, onde os protagonistas interagem entre humanos com diferentes graus de personalização, como Herbie em Se Meu Fusca Falasse, que ganha nome e vida própria, e, embora apresente uma personalidade definida, não fala ou exibe qualquer movimento ou característica humanas; ou no desenho Pole Position, onde artifícios de inteligência artificial são usados para atribuir personalidades próprias aos veículos; ou mesmo em Transformers, onde os autores se valem de atributos alienígenas para justificar as características humanas das máquinas; em Carros, os protagonistas são todos simplesmente carros, adquirindo características totalmente humanas, dispensando completamente a presença de pessoas no enredo.
Com isso, podemos esboçar uma primeira ideia sobre a humanização do automóvel. Tanto que, no processo de articulação homem/máquina, já nos é possível confundir as propriedades de cada componente deste composto. Acerca disso Guattari[11] salienta:
No ato de dirigir um carro, não é a pessoa enquanto indivíduo, enquanto totalidade egóica que está dirigindo; a individuação desaparece no processo de articulação servo-mecânica com o carro. Quando a direção flui, ela é praticamente automática e a consciência do cogito cartesiano não intervém.
Em 1979, Macluhan[9] chamou o carro de “noiva mecânica”, que muitas vezes aparece como objeto sexual. “O plástico que recobre seus bancos (dos carros novos) evoca a integridade do hímen”. Por outro lado, o carro usado, por ter um passado geralmente desconhecido e, com o intuito de valorizá-lo, diversos anunciantes informam que é de único dono e pouco rodado, termo machista também utilizado para definir as mulheres que tiveram poucos parceiros.
E onde começa essa valoração do automóvel? Acredito que esse “valor” que é atribuído ao carro foi construído histórico e culturalmente e tem, em grande parte, a sua pedra fundamental no final da segunda guerra mundial. Neste período a indústria automobilística surgiu como forma de sustentar a economia mundial, alternativa à indústria bélica, sendo privilegiada pela reconstrução da Europa, que contava agora com rodovias novas e modernas[12]. Aqui, também, as propagandas começam a explorar, principalmente, a vaidade humana para vender o novo produto.
Há também no veículo questões de gênero, pois determinados tipos, categorias, de carros são voltados para o público masculino, feminino ou até mesmo ao público gay. Nesse sentido, Figliuzzi[13] nos leva a importantes indagações: se as qualidades do meu carro são em parte minhas qualidades, se os defeitos dele são meus defeitos, o que acontece quando um carro é eleito como feminino? Será que essa característica impede os homens de utilizá-la? Carro que é apresentado como sendo para um público gay, como se relaciona com o comprador masculino heterossexual?
Enfim, contextos da sociedade onde os carros parecem tão humanos quanto nós, pois não se configuram apenas como máquinas, mas como um totem carregado de significados, um espelho da vida social. Só pode ser bem compreendido, então, à luz de uma razão simbólica, porque é investido dos valores da civilização dos “homens de quatro rodas” [9].

[1] GIUCCI, G. A vida cultural do automóvel: percursos da modernidade cinética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004 (tradução de Alexandre Martins).

[2]  AUTOMÓVEL. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikipédia Foundation, 2014. Disponível em: <pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Autom%C3%B3vel&oldid=38227908>. Acesso em: 21 fev. 2014.

[3] MELO, V. A. O automóvel, o automobilismo e a modernidade no Brasil (1981-1908). Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 30, n. 1, p. 187-203, set. 2008.

[4] SANTANA, M. I. História do Automóvel. Infoescola. Disponível em: http://www.infoescola.com/curiosidades/historia-do-automovel/ Acesso em 21 de fevereiro de 2014.

[5] SILVA, R. O. O psicólogo na promoção da saúde e prevenção de acidentes de trânsito. In: MARIUZA, Clair Ana e GARCIA, Lucio Fernando (orgs.). Trânsito e mobilidade humana: Psicologia, Educação e Cidadania (pp. 18 – 29) – Porto Alegre: Ideograf / Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul, 2010.

[6] CASTRO, V. J. A “humanização” da mercadoria na publicidade. Revista eletrônica do Filocom, 2005. Disponível em: <www.eca.usp.br/nucleosfilocom/existocom/artigo6b.html>. Acesso em: 01 nov. 2012.

[7] MORAIS, R. C.; PASCUAL, J. G. & SEVERIANO, M. F. V. “Apaixonados por carros como todo brasileiro” (?): Reflexões frankfurteanas sobre a indústria cultural contemporânea. Estud. pesqui. psicol. [online]. 2011, vol.11, n.3, pp. 873-897. ISSN 1808-4281.

[8] BAREMBLITT, G. F. Compêndio de análise institucional e outras correntes: teoria e prática, 5ed., Belo Horizonte, MG: Instituto Felix Guattari (Biblioteca Instituto Félix Guattari; 2), 2002.

[9] QUEIROZ, R. S. Os automóveis e seus donos. Imaginário – USP, 2006, vol. 12, no 13, 113-122.

[10]MACEDO, G. M. (2004). Trânsito, psicologia e subjetividade. Disponível em <www.perkons.com.br/pt/noticia/414/transito–psicologia-e-subjetividade#sthash.jw6nyvM8> Acesso em: 05 fev. 2014.

[11] GUATTARI, F.  & ROLNIK, S. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes, 2005.

[12] RUEDA, F. J. M. Psicologia do trânsito ou avaliação psicológica no trânsito: faz-se distinção no Brasil?. In: Conselho Federal de Psicologia. Ano da Avaliação Psicológica (2011).

[13] FIGLIUZZI, A. Homens sobre rodas: representações de masculinidades nas páginas da revista Quatro Rodas. 2008. 181f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2008.

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