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Os 40,7 milhões de dependentes de álcool e drogas e a Lei 13.546


Por Márcia Pontes Publicado 30/04/2018 às 03h00 Atualizado 02/11/2022 às 20h15
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Foto: Pixabay.comFoto: Pixabay.com

Juntando todos os dados de pesquisas sobre dependentes de álcool e outras drogas estima-se que o Brasil tenha cerca de 40,7 milhões de dependentes, pessoas que não conseguem ficar um dia sequer sem consumir substâncias lícitas e ilícitas. Muitas dessas pessoas, independente de serem habilitadas, dirigem e se envolveram ou ainda vão se envolver em acidentes de trânsito que podem matar. Todos os anos cerca de 50 mil pessoas morrem no trânsito brasileiro e cerca de meio milhão sobrevivem com algum tipo de sequela. Só no ano de 2017, pouco mais de 39 mil motoristas foram flagrados dirigindo embriagados segundo dados do Denatran.  Todas as fichas foram apostadas na Lei 13.546 na esperança de que, finalmente, se colocasse atrás das grades os motoristas que bebem, dirigem, ferem e matam. O problema é que trânsito também é um fenômeno social, questão de segurança e de saúde pública. O problema é que o Direito Penal, pelo ordenamento jurídico brasileiro deve ser a última ratio, a última instância, mas passou a ser evocado como única solução em um país em que o sistema carcerário beira o sucateamento e a implosão.

Notícia recente no Estadão é que se todas pessoas com mandados de prisão pendentes no banco de dados do Conselho Nacional de Justiça fossem detidas o déficit prisional do país cresceria 164% e a população carcerária brasileira ultrapassaria 1 milhão de pessoas, elevando a média de 1,7 para 2,9 presos por vaga existente. Em 18 estados do país os mandados não cumpridos superam as vagas existentes nas prisões. Se estamos falando de uma população de 40,7 milhões de dependentes químicos e se eles são considerados pelo CID-10 e pelo DSM-IV como doentes que precisam de tratamento, o encarceramento para todos os tipos de crimes de trânsito envolvendo embriaguez seria a melhor terapia?

A Lei 13.546 foi aprovada com vetos e o resultado final foi a qualificação dos crimes de homicídio culposo (5 a 8 anos de reclusão) e lesão corporal culposa (2 a 5 anos de reclusão). Em um dos PL que deu origem à nova lei a proposta era de criminalizar o ato de beber e dirigir, independente de ter provocado acidente ou tirado a vida de alguém, que colocava em xeque os princípios da proporcionalidade e razoabilidade que regem o Direito brasileiro. A ideia é que os condutores punidos servissem de exemplo para os demais e se engajassem nas campanhas para dirigir de cara limpa. Mas, será que isso ia funcionar com os cerca de 11,7 milhões de alcoólatras e outros 29 milhões de dependentes de outras drogas no Brasil? Afinal, muitos deles bebem, consomem drogas, causam acidentes, lesões, mortes e continuam dirigindo.  Se dependentes de álcool e drogas são considerados doentes que precisam de tratamento, o xilindró seria a melhor terapia?

No ano de 1965 a revista O Cruzeiro já alertava sobre as causas e efeitos do alcoolismo, considerado à época o mais “atual” e corrosivo veneno do corpo e da alma e o maior problema enfrentado pela Psiquiatria. No ano de 1015 o consumo de álcool no Brasil já era  40% maior do que a média mundial. Uma média de 9,8 litros por pessoa em um país em que crianças e adolescentes costumam experimentar bebidas alcoólicas a partir dos 10 anos. Estamos diante de um fenômeno social grave, problema de saúde e de segurança pública que tem as suas consequências no trânsito.

Por outro lado, temos um ordenamento jurídico regido por uma Constituição em que a pena de prisão no Brasil é a última instância quando os demais ramos do Direito não conseguirem resolver o problema. Temos um artigo 5º que considera a liberdade um direito fundamental, cujas leis retroagem somente para beneficiar o réu, um artigo 44 do Código Penal que diz que independente da quantidade de pena a prisão pode ser trocada por penas alternativas e um artigo 313 do Código de Processo Penal que não prevê prisão preventiva para crimes culposos, apenas para os dolosos com pena máxima superior a 4 anos.

Para os juristas na área do Direito Penal a criminalização da conduta de beber e dirigir para colocar atrás das grades aquele que foi flagrado dirigindo embriagado independente de ferir ou matar alguém é radical, persecutória e fora da realidade penal e carcerária brasileira. Não existe lei no mundo que mude comportamentos e o que se está tentando fazer é mascarar os sintomas, atacar as consequências e não o problema na origem.

Alguém aí já conviveu com um dependente de álcool e drogas na família? Tem ideia do sofrimento que é? Tratam-se de pessoas que, quando de cara limpa, são cidadãos educados, corteses, pais e mães amorosos, filhos exemplares, até que consumam a substância e se transformem em carrascos da própria família. Muitos são pacientes psiquiátricos que negam ou interrompem tratamento. Eles não temem discursos e nem os rigores da lei. Não adianta ameaçar com cadeia, com multa pesada, pois eles continuarão dependentes e até reincidentes.

Há motoristas alcoolizados que são os únicos habilitados na família, dirigem embriagados e drogados o tempo todo, levam os filhos na escola, dirigem antes, durante e depois do trabalho. Alguns colecionam uma folha imensa de infrações associadas ao álcool e direção. Suspendem ou cassam o direito de dirigir deles e continuam dirigindo. Alguns dirigem sem sequer serem habilitados. Mas, o sistema prisional suportaria prisão para todos? Cabe à estes condutores apenas a condição de infratores de trânsito?

Longe de algum tipo de salvo conduto ou de desculpa para eles, o foco aqui é em ampliar a questão da bebida e direção, para o álcool enquanto droga lícita e de largo consumo independente de sexo ou classe social. Quem já não viu reportagens de celebridades que jamais pensaríamos que dirigiam embriagadas desde técnicos e jogadores de futebol a galãs, musas e apresentadores de programas de tevê que provocaram acidentes ou se recusaram ao teste de etilômetro?

Consumo de álcool no Brasil é uma questão cultural e fonte de renda não só para quem fabrica, mas para quem lucra associando o nome da cidade às oportunidades de identificar-se como a Capital Nacional de tal bebida alcoólica ou de promover festas etílicas conhecidas internacionalmente. No país de cerca de 11,7 milhões de dependentes de álcool as propagandas incentivando o consumo são livres e não tiveram a mesma proibição das propagandas de cigarros. Aliás, não seria um bom começo proibir ou os impostos e lucros com os fabricantes de bebidas iriam fazer falta?

Trânsito, por si só, é questão de saúde pública não só pelas consequências dos acidentes, mas porque também se linka com problemas associados à dependência de álcool e drogas para os quais as políticas públicas existentes precisam de mais atenção. Trânsito é questão de comportamento não só associado à educação, mas também à dependência química de quem dirige com estado psicomotor alterado. Será que o Direito Penal sozinho vai resolver tudo isso com um sistema carcerário à beira da implosão em que cada encarcerado custa cerca de R$ 3 mil mensalmente e que só não quebrou de vez porque a tendência vem sendo cada vez mais substituir a prisão por medidas cautelares e aplicação de penas de serviços comunitários?

São pontos fundamentais a serem refletidos por toda a sociedade. Até para não mascarar os sintomas, não acabar fazendo cortina de fumaça para a raiz do problema e não nos encarcerarmos juntos nele.
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