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Ensina-se a dirigir do dia para a noite no Brasil?


Por Márcia Pontes Publicado 07/10/2016 às 03h00 Atualizado 02/11/2022 às 20h23
 Tempo de leitura estimado: 00:00

autoescola_instrutorEm uma analogia e em uma conta fácil de resolver, fica o questionamento: forma-se um condutor do dia para a noite? Consideremos: de um dia para o outro temos 24 horas. A carga horária das aulas práticas é de 20 horas. Tudo bem que têm as 5 horas do simulador, mas simulador não é veículo de verdade embora imite bem. Isso nos deixa com menos de 24 horas, menos de um dia para a noite para o candidato à primeira habilitação ter o primeiro contato com o veículo que ele vai dirigir para a vida inteira e aprender a dirigi-lo com a segurança que se espera para não provocar acidentes por imperícia.

 

Isso é suficiente? Isso basta?  Se todas as aulas práticas fossem ministradas em sequência o candidato sairia do processo sabendo dirigir?

Dentre praticamente todos os profissionais que ensinam a dirigir o questionamento sobre a carga horária de aulas práticas é antigo. É fato que um condutor se forma agregando os conhecimentos das demais disciplinas que compõem o processo de habilitação e com a inegável e imprescindível grade das aulas teóricas. Mas, é ali, no momento de sentar no banco do motorista, ser apresentado ao veículo e assumir o controle que começa a contar, de verdade, a parte técnica de dirigir. É condição fundamental para aplicar o que aprendeu na parte teórica e o que vai acionar um dos principais gatilhos para o acidente: saber o que fazer no trânsito.

Tendo de ensinar e aprender à toque de caixa, resta ao sistema de formação adestrar o aluno para passar na prova, ainda que muitos profissionais não concordem. Outros, de mãos atadas pelo próprio sistema de formação, lamentam que se não adestrar o aluno ele não consegue cumprir com a carga horária mínima. Aliás, venho abordando essa questão do adestramento não é de hoje: desde 2008 com o trabalho de Educação para o Trânsito online (EPTon) com o Grupo Voluntário Aprendendo a Dirigir e nos livros de minha autoria publicados desde 2012.

Dentro dessas 20 horas práticas reconhecidamente ao volante de um carro de verdade ou contando as outras 5 horas/aula no equipamento que simula virtualmente o ato de dirigir, existe uma série de intercorrências, dentre elas: o medo de dirigir dos candidatos, as inseguranças, o fato de que alguns aprendem mais depressa e outros mais devagar, a necessidade de mais aulas práticas para que o aluno vá preparado e com segurança para o exame prático e a didática, a parte pedagógica.

Some-se a isso o adestramento que já começa lá nos Centros de Formação de Instrutores que reproduzem formas equivocadas de ensinar, como a “tremidinha”, as marcações coloridas em partes do veículo, as receitinhas prontas de baliza e as tais contagens de voltinhas no volante, “estratégias” que mais confundem o aluno do que contribuem para o ensino e a aprendizagem significativa.

Ignora-se o fato de que o ponto da tremidinha é o ponto mais alto da embreagem, o ponto em que o carro avisa que vai “morrer” e o ponto em que quando o aluno levanta o pé da embreagem o carro dispara sem controle.

Ignora-se que quando se conta voltas completas no volante o candidato não trabalha os movimentos finos, não constrói a relação e a resposta entre movimento de volante, posição das rodas e de partes do veículo neste momento. Diante do nervosismo típico dos candidatos, “dá branco” na hora da prova e ele se perde nas contagens das tais voltinhas. Mesmo tendo mais duas chances para tentar consertar a manobra da baliza não vai conseguir porque não aprendeu, apenas memorizou, foi adestrado.

O próprio fato de que o aluno chega ao final das aulas práticas deixando o carro interromper o funcionamento do motor por não saber o básico do básico que é controlar os pedais já diz muito sobre as dificuldades que terá para sair e parar o veículo corretamente, não invadir a preferencial, parar com segurança antes de uma placa de parada obrigatória, manobrar e, claro, completar o percurso e a baliza. Se quase tudo em um veículo depende dos pedais e carro se dirige nos pedais, mas o aluno não domina os fundamentos de pedais, o que se espera como resultado nos exames práticos?

Se antes não se resolver a questão pedagógica da formação de instrutores e de condutores com seriedade continuaremos adestrando e não ensinando e aprendendo significativamente.

É fato que a prática vem com o ato de dirigir diário, aplicando os fundamentos que se aprendeu durante as aulas no processo de formação. Treino depois de habilitado gera a prática, que gera a perícia, que por sua vez gera a habilidade que vai levar à independência e autonomia para saber tomar decisões seguras no trânsito. Mas, para isso, é necessário que os fundamentos para dirigir tenham sido construídos de forma significativa e preventiva para o futuro condutor.

É necessário que todos os envolvidos no processo de ensinar e aprender a dirigir estejam realmente comprometidos com o ensino, com a aprendizagem, com a parte pedagógica e com as mudanças que necessitam ser feitas, sobretudo, em relação à consistência pedagógica e a carga horária das aulas práticas.

Porque o modo como os nossos alunos dirigem diz muito sobre o modo como nós, os seus professores, os ensinamos. Diz muito sobre o modo como nós, professores, somos formados. E tudo isso diz muito sobre a seriedade como o país trata e faz o processo de formação. De instrutores e de condutores.

Adestramento não é aprendizagem, é condicionamento. É instruir para saber lidar com situações limitadas diante de toda a complexidade do ato de dirigir.

Ensino e aprendizagem significativa. É disso que precisamos.

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